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Mulata Bossa Nova foi inspirada na primeira mulher negra eleita como Miss

 

Vera Lúcia, a primeira negra a ganhar um concurso de Miss, inspirou o compositor

Por Nelson Gonçalves, especial para a Folha2

Nos salões de carnaval, todos os anos, a música Mulata Bossa Nova é uma das canções mais cantadas. “Mulata Bossa Nova! Caiu no hully gully. E só dá ela...”. Não tem quem não conhece e já cantarolou esses versos da melodia. O que muita gente não sabe é que, por trás desse sucesso musical, há uma estrela de verdade e uma musa da história nos concursos de miss beleza.

 Vera Lúcia Couto dos Santos, a musa inspiradora para a marchinha carnavalesca de João Roberto Kelly, foi a primeira negra a competir e ganhar o Concurso Miss Guanabara, no ano de 1964, desbancando outras 25 fortíssimas candidatas para o Miss Brasil. Na época ela tinha 18 anos e 1,68 de altura, considerada medidas boas para o padrão do concurso.

 Ela representou o Clube Renascença, que ela frequentava desde criança. Foi convidada insistentemente pela diretoria do clube. Mas ela vinha recusando os convites porque as despesas do concurso teriam que ser bancadas pela sua família. E ela temia que, com os gastos, seu pai ficasse impedido de adquirir o carro que tanto queria: um Gordini. Acabou aceitando concorrer depois que o pai lhe incentivou, prometendo se esforçar para adquirir o veículo, fato que acabou não se consumando depois.

 Até então nunca nenhuma negra tinha alcançado esse título. Ela venceu e fez bonito na passarela. Concorreu ao Miss Brasil. Não ganhou o concurso, ficando em segundo lugar. Mas foi convidada para representar o Brasil no Miss Beleza Internacional, em Long Beach, nos Estados Unidos, ficando na terceira colocação.

 Inaugurado em 1951, durante os anos dourados do Brasil, o Clube Renascença surgiu para os negros da classe média do Rio de Janeiro como uma opção de esportes e lazer, já que eles eram proibidos naquela época de frequentar os clubes tradicionais da cidade. Segundo o historiador Daslan Melo Lima, entre os fundadores do Renascença estava um grupo de médicos e de comerciantes negros, que não queriam sofrer discriminação em outros espaços da cidade.

 Desfile no Maracanãzinho 

Vera no Miss Guanabara e desfilando nos Estados Unidos

Ao som da música “Cidade Maravilhosa”, Vera desfilou na passarela, com o ginásio do Maracanãzinho lotado, aos gritos do público dizendo “já ganhou”. Mas nem tudo foi fácil. Ela sofreu preconceito por parte de algumas pessoas da plateia.

 Em entrevista, anos depois para o site do G1, Vera contou detalhes da pressão sofrida pelo fato de ser negra. “Eu lembro que, no dia do concurso de Miss Brasil, eu recebi uma ligação no estúdio do meu costureiro dizendo que para eu desistir porque eu seria agredida. Falaram uma série de coisas. Mas por outro lado, também recebi um apoio muito grande do público e da imprensa da época”.

 Durante a apresentação para os jurados, no Maracanãzinho lotado, Vera também enfrentou algumas manifestações adversas. “A passarela era alta e em formato de ferradura. Ao lado, ficavam as mesas de pista. Na hora em que eu passei desfilando em grupo, tinha uma senhora que corria entre as mesas e gritava: ‘sai daí, sua crioula. Sai daí! O seu lugar é na cozinha’. E aquilo fez com que me desconcentrasse”.

 As agressões verbais a desconcentraram a tal ponto que, no momento do desfile para o júri, ela colocou quase tudo a perder. “Eu fiquei tão nervosa que, quando fui desfilar sozinha, pensei: ‘não quero olhar para esse lado, onde estava aquela mulher’. Eu fiquei olhando para o outro lado, onde ficava a torcida do Renascença na arquibancada. Eu sei que passei direto da entrada para o júri. Todo mundo gritando: ‘volta, volta!’. E foi ficando um silêncio. Eu acho que me desliguei tanto que eu não dava sentido ao que estava acontecendo. Só sei que olhei para um senhor que colocou as mãos na cabeça e disse: ‘que desgraça’. Aquilo me sacudiu”.

 Como Vera era a única candidata que sabia dar um pivô completo de salto alto (uma volta de 360º no próprio corpo), ela deu dois pivôs e voltou para o seu caminho. “O público delirou com aquilo e o próprio júri ficou em dúvida se eu tinha errado ou feito de propósito”, lembra.

 Ao vencer o concurso do Miss Guanabara, Vera ganhou popularidade por todo o Brasil. O título lhe trouxe muita visibilidade, tanto para sociedade carioca como para a paulista. Com a popularidade em alta, sua fotografia estava estampada na capa das principais revistas brasileiras.

 Musa da música Mulata Bossa Nova

Vera Lúcia foi capa, na época, das principais revistas brasileiras

A popularidade foi tanta que o cantor e compositor João Roberto Kelly, conhecido por ser autor de marchinhas carnavalescas, resolveu homenageá-la naquele ano com a música “Mulata Bossa Nova”. João Kelly estava no Maracanãzinho assistindo ao concurso e ficou boquiaberto com o rodopio feita na pista pela mulata. “Eu vi aquela moça sofisticada, bonita, e aí meu deu a ideia de fazer uma marchinha para ela”, disse o compositor, numa entrevista para a Rádio CBN. “Mulata Bossa Nova faz logicamente referência ao rebolado da Vera Lúcia”, afirmou.

 Conhecido por ser autor do sucesso de marchas carnavalescas como “Cabeleira do Zezé”, composta em homenagem a um garçom do bar onde ele frequentava, “Colombina” e “Maria Sapatão” (gravada pelo apresentador Chacrinha), João Kelly fala que a música “Mulata Bossa Nova” nasceu quando ele viu a Vera desfilar. “Ela dava uma piruetazinha na passarela que, até hoje, não vi nenhuma outra dar”.

 Convites não faltaram para Vera seguir carreira de artista, para ser modelo e trabalhar como atriz. Preferiu casar e ser mãe de três filhos. Tornou-se funcionária da Riotur, onde trabalhou por 35 anos até se aposentar. Passados 60 anos do famoso desfile que a consagrou como Miss, Vera reside atualmente num pacato bairro de Niterói e longe dos holofotes da fama. E tornou-se amiga do compositor que a homenageou.

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Vera Lúcia em sua casa em Niteroi e quando representou o Brasil nos EUA
(foto reprodução do G1)

Vera Lúcia com a faixa Miss Guanabara em 1964

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