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Pata Seca, o gigante escravizado de Sorocaba

Visconde de Cunha Bueno era um dos homens mais rico e poderosos dos anos 40. E fez questão de se deixar fotografar ao lado da sua mais cara aquisição na feira dos escravos
 

Nelson Gonçalves, especial para a Folha2

Na praça central de Sorocaba, em 1849, um jovem negro de 2,18 metros de altura atraiu a atenção de todos os fazendeiros. Chamava-se Roque José Florêncio, conhecido como Pata Seca, apelido inspirado nas pernas finas que contrastavam com o corpo monumental. Ele tinha 22 anos e chamou a atenção do Visconde de Cunha Bueno por sua altura incomum.

 O visconde sorri, pois encontrava exatamente o que procurava. Acreditava na superstição de que homens muito altos e de pernas finas geravam mais filhos homens e por isso eram valiosos no mercado escravista. Filhos valiam mais que filhas mulheres no mercado de escravos. Aquele homem seria como o PO (Puro de Origem) na compra de gados. Foi a mais valiosa aquisição do visconde. Não para trabalhar na lavoura, mas para outra função muito mais lucrativa.

 Levado para a fazenda Santa Eudóxia, em São Carlos, Roque não foi destinado ao trabalho pesado: foi obrigado a atuar como reprodutor, numa prática cruel de reprodução forçada que marcava o sistema escravista. Durante cerca de 25 anos, foi compelido a ter relações com dezenas de mulheres escravizadas. Estima-se que tenha gerado entre 200 e 300 filhos, muitos deles vendidos ou explorados ao nascer.

Crueldade dos tempos da escravidão

 O sistema funcionava com uma crueldade calculada. O Visconde selecionava as escravas que estavam em idade fértil e as enviava para a senzala onde Roque vivia. Não havia escolha, não havia consentimento, não havia dignidade.

 Era estupro institucionalizado, transformado em prática comercial. Roque era obrigado a ter relações com mulheres que nunca tinha visto antes. Mulheres que choravam, que resistiam, que aceitavam em silêncio a violência por não terem alternativa.

 Apesar da função brutal, Roque recebia melhores condições de vida do que outros cativos, pois era tratado como um “investimento” valioso. Também cuidava dos cavalos de raça e fazia viagens até São Carlos, onde conheceu Palmeira, escrava doméstica com quem, autorizado pelo visconde, se casou e viveu por mais de 75 anos.

 Com a Lei do Ventre Livre (1871), sua utilidade reprodutiva caiu, e com a Abolição (1888), Roque ganhou 20 alqueires de terra do próprio Visconde. Viveu como homem livre, trabalhou na roça e teve 9 filhos legítimos, criados por ele e Palmeira. Aos poucos, porém, fazendeiros vizinhos foram tomando suas terras, restando-lhe apenas uma pequena parte.

 Roque viveu de forma simples, mas com dignidade, até idade muito avançada. Morreu em 1958, com cerca de 130 anos, segundo relatos da comunidade, tornando-se uma lenda local. Hoje, acredita-se que cerca de 30% da população de Santa Eudóxia, distrito de São Carlos, descenda dele.

Fotografia tirada em 1955 de Pata Seca, durante desfile na cidade de São Carlos

O homem que mais tempo viveu no Brasil

Sua história revela uma das facetas menos discutidas e mais cruéis da escravidão: a exploração reprodutiva, que tratava homens e mulheres como instrumentos de lucro. Mas também mostra resistência, sobrevivência e a força de alguém que, apesar da violência sofrida, conseguiu construir família, liberdade e legado.

 Três anos antes de falecer, Pata Seca participou de desfile em São Carlos, durante o aniversário da cidade, como o homem mais velho do Brasil. Na ocasião, foi tirada uma das únicas fotos de Roque de que se tem conhecimento. Sua neta Maria Madalena Florêncio Florentino guarda com orgulho a fotografia do avô e fez questão de mostra-la durante uma entrevista em 2017 para a reportagem do jornal A Cidade, de São Carlos.

A neta Maria Madalena faz questão de mostrar a única fotografia guardada do avô

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