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Vandeca, a "capitã da cavalaria aérea", desfila, junto com seu cachorro, na frente da Cavalaria da Polícia Militar, durante desfile do Sete de Setembro (foto: Toninho Cury) |
Nelson Gonçalves, especial para a Folha2
A figura popular Vandeca, que vagava dia e noite pelas ruas do centro de São José do Rio Preto nas décadas de 60, 70 e 80, debatendo temas do cotidiano político, cultural e artístico, virou tema de bloco carnavalesco, peças de artesanato, música e assunto para diversos artigos de jornais. O que pouca gente sabe é que o Lions Clube Centro ganhou um terreno da prefeitura, durante o primeiro governo do prefeito Manoel Antunes, e construiu uma casa para ela.
Vandeca foi uma mulher polêmica para a época. Em tempos árduos da ditadura militar ela era destemida. Com suas roupas quixotescas e estravagantes, ela não passava despercebida por onde andava. Tinha opiniões fortes e ficava brava quando era contrariada. Era figura inesquecível nos desfiles de Carnaval do Sete de Setembro. Acostumada a ficar no meio dos cruzamentos das movimentadas ruas centrais da cidade para ajudar a organizar o trânsito. Não tinha quem não a conhecia. E o interessante é que os motoristas obedeciam suas ordens, de parada e avanços, dadas por um sonoro apito. Ela faleceu em 23 de maio de 1989 e até hoje é lembrada pela classe artística, cultural e política.
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Turma do Trabalho Social com Idosos do Sesc monta peça teatral para reverenciar Vandeca, a "capitã da cavalaria aérea" |
Peça teatral tem Vandeca como tema central
A turma do curso de teatro do Trabalho Social com Idosos (TSI) do Sesc desenvolveu, em 2022, a performance “Uma Rua Chamada Vandeca”. O trabalho foi pautado em pesquisas feita com moradores mais velhos da cidade que ainda trazem na memória as histórias pitorescas dessa personagem. Carmela Dalva Lombardi, a Vandeca, dizia ser “agente da cavalaria aérea”.
O artista plástico Raimundo Teixeira criou o “Estandarte Vandeca”, como homenagem a essa exótica mulher extrovertida. O livro “Páginas Ímpares”, do jornalista José Luiz Rey, serviu como fonte de pesquisa. A artesã Cristiane Calvo, integrante do grupo feminista Arteiras pela Democracia, disse que iriam prestar homenagem em bordados para mulheres rio-pretenses, cujas histórias precisam ser resgatadas para serem visibilizadas na cultura local. E Vandeca seria uma das mulheres a serem retratadas nos bordados das artesãs. O artista plástico Miguelavo retratou Vandeca em uma tela, que ficou exposta por muitos anos no saguão da sala do café na Câmara Municipal.
“A história da cidade não foi só de coronéis, políticos, doutores, professores, intelectuais e ídolos dos esportes”, escreveu o músico e historiador Fernando Marques, em sua coluna semanal no jornal “Diário da Região”, ao afirmar que Vandeca foi, talvez, a mais popular entre as mulheres rio-pretenses.
O fotografo Jorge Maluf informa que somente a conhecia de vista, mas lembra que teve uma temporada que Vandeca invocou com ele. “Ela cismou que eu era terrorista e quando me via, vinha pro meu lado gritando... Não sei porque ela colocou isso na cabeça. Acho porque ela deve ter visto aqueles cartazes de ‘procurados’ pela revolução de 64 e devia ter alguém parecido comigo”, conta, dando boas risadas do acontecido.
Vandeca marchava com botas coloridas nos desfiles do Sete de Setembro na frente das guarnições ou da cavalaria da Polícia Militar. Chamava a atenção por onde passava. Mas não tinha casa própria e foi vista, muitas vezes, dormindo desabrigada debaixo de viadutos ou em bancos nas praças públicas.
Comovendo-se dessa situação calamitosa, os associados do Lions Centro de São José do Rio Preto resolveram arregassar as mangas, comprar um pequeno terreno e construir uma casa para a Vandeca. E isso foi feito, em meados dos anos 80. A casa, de tijolos e alvenaria, foi construída em tempo recorde. E criou para o Lions alguns problemas internos, como ciúmes do caseiro. A casa, que até hoje pertence ao Lions Clube, com escritura e tudo mais, mas não se sabe quem está ocupando o imóvel que um dia serviu de moradia para a Vandeca.
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Vandeca teve casa construída pelo Lions Clube Centro na Vila Ercília |
O "namorado" da Vandeca
O fotografo Toninho Cury escreveu em blogue texto falando sobre a figura folclórica e histórica da Vandeca. “Ela era polêmica. Perambulava pelas ruas centrais discutindo o dia a dia político da cidade”, lembra Cury. “Ela era destemida, em plena ditadura militar. Criticava tudo e todos sem censura alguma. Xingava vereadores, prefeitos e autoridades em geral”.
Cury também lembra que a Vandeca era assídua frequentadora dos programas de auditório das emissoras de rádio e da antiga TV Rio Preto, canal 8. “Sempre em defesa de suas teses lunáticas, Vandeca tinha como ídolo o radialista Marcelo Gonçalves, na época um fenômeno em audiência”. E Vandeca tinha suas razões para isso. Durante toda sua vida o radialista sempre a socorreu em seus momentos difíceis.
Toninho Cury revela que certa vez, ela se encontrava muito doente, já quase no fim da vida, e lhe pediu que, se fosse possível, comprasse uns remédios receitados por um médico para o coração. “Fomos até a farmácia do Willian Raad e comprei os remédios”, lembra Toninho. “Com os olhos lacrimejando e trêmula, Vandeca me deu um beijo, um abraço e disse: ‘sabe porque sou assim?’. Me calei na reposta que veio em seguida pela sua própria boca: ‘é que mataram meu filho em meu colo’. Depois disso, a vi poucas vezes perambulando pelas ruas e logo soube da notícia de sua morte”.
Toninho Cury tem uma fotografia histórica da Vandeca, que estampa a abertura desta matéria, desfilando no Sete de Setembro, na avenida Bady Bassitt, em companhia de seu cãozinho, com a Cavalaria do 17º BPM (Batalhão da Polícia Militar).
Caruaru, o "xerife" da estação de trem
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Caruaru era um carregador de malas da antiga estação ferroviária (foto:: Toninho Cury) |
Outra figura folclórica que marcou época em São José do Rio Preto é Mário da Silva, ou simplesmente Caruaru, como gostava de ser chamado. Ele se tornou figura conhecida na cidade por andar sempre fardado e com um apito pendurado no pescoço, com o qual também ajudava os policiais a comandar o trânsito da cidade nos horários de rushe.
Caruaru era carregador de malas na antiga estação da EFA (Estrada de Ferro Araraquarense). Após completar 70 anos, já sem muitas forças nos braços para carregar as pesadas malas, ele passou a atuar como guardador de carros durante as noites e madrugadas em que os motoristas saiam para frequentar bares e restaurantes da cidade. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que Caruaru foi o primeiro "flanelinha" a atuar em São José do Rio Preto.
Segundo o músico e historiador Fernando Marques, Caruaru foi o último sobrevivente do “quinteto” folclórico da cidade: Vandeca (capitã da ‘cavalaria aérea), Canguçu (o tigre que plantava bananeira nos galhos das árvores), Mula Manca (que tinha o diabo de bengala no corpo) e “Cabeça Branca” (o louco que corria atrás de todos).
Dentre eles, o mais pacifico era o Caruaru. Ele suportava até as brincadeiras de mau gosto. Para irritar Caruaru, durante as noites e madrugadas, a rapaziada mais jovem desamarrava da árvore seu carrinho de mão, onde ele costumava dormir, e soltavam nas ruas abaixo. O carrinho de mão do Caruaru era bem ajeitado. Tinha até teto sintético, doado pelo empresário Waldemar Perdiza, dono das Capotas Perdiza, que era referência quando se tratava de capotas automotivas nos anos 50, 60 e 70. Pernambucano de Catente, Caruaru morreu em São José do Rio Preto no dia 20 de agosto de 2012, aos 84 anos, e foi enterrado como indigente, na cova de número 6963, no cemitério do distrito de Talhados.
Junto com Silveira Coelho, que se destacou como apresentador de programas de rádio e televisão, Caruaru compôs uma música que foi gravada pelo Coral do Teatro Municipal de Rio Preto. A letra da música, segue abaixo:
“Lá vem o trem / xique, uuú /
Quem leva doutor / é o Caruaru
Faz tempo que aqui chegou e
Nunca mais foi embora /
Quem não conhece Caruaru /
Não é daqui, é de fora
Com seu jeito / com seu carrinho e seu boné
Mala lhe bate no peito
Esfrega na ponta do pé"
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Caruaru era uma figura bastante folclórica nas ruas de São José do Rio Preto |