Estação de Quijarro: ponto de partida do conhecido e temido Trem da Morte, na Bolívia |
Por Nelson Gonçalves, especial para a Folha2
O ano era de 1993. Faltavam 10 dias para o Natal daquele ano quando embarcarmos, no final da tarde de um sábado, na rodoviária de São José
do Rio Preto, num ônibus da Viação Andorinha. Acompanhado da esposa Mila e do nosso
filho Renzo, que tinha pouco mais de um ano, e de oito volumosas malas e
mochilas. Sabíamos que a viagem seria longa e difícil até chegarmos ao destino
final, que era Lima, a capital do Peru, passando pelo famoso “Trem da Morte” na
Bolívia.
Essa viagem seria a realização de um sonho que acalentávamos desde
adolescente. Queríamos conhecer, por terra, alguns estados brasileiros e alguns países,
atravessando o pantanal mato-grossense e a cordilheira dos Andes. Viajando de
trem, ônibus e transportes locais, tipo vans, para conhecer, bem de perto, o povo de cada lugar
por onde passássemos. Enfim a viagem durou mais do que esperávamos. Foram 10
dias entre estradas, trens e estadias, com 17 baldeações.
A rodoviária de Presidente Prudente foi a nossa primeira
parada e baldeação. E foi muito fácil fazer o transbordo das malas de um para
outro ônibus, porque eles pararam lado a lado. A segunda parada e troca de
ônibus aconteceu em Campo Grande (MS). Aí começaram as complicações. O
desembarque era numa plataforma e o embarque do outro lado, bem distante.
Teríamos que atravessar toda a rodoviária, subindo e descendo
escadas rolantes. E como fazer isso com tantas malas e com uma criança de colo?
Não dava para levar todas as malas de uma só vez. Não tínhamos pensado nesse
problema. A solução foi levar o que podíamos até o outro lado para o embarque. Arriscamos,
pedindo ajuda para um desconhecido que se prontificou a tomar conta daquelas
malas enquanto fomos buscar as demais. Por via das dúvidas deixamos nossas bagagens
amarradas junto a um pilar da rodoviária.
Depois de passar por muito verde e planícies, atravessando
balsas no pantanal, deslumbrando lindas paisagens e se deliciando com a imensa
fauna e flora, chegamos em Corumbá (MS). Enfrentamos novamente o mesmo problema
com as malas, enquanto buscávamos um táxi para nos levar até a divisa com a Bolívia.
Naquele tempo os carros brasileiros não podiam atravessar a ponte. Fizemos a
travessia da ponte a pé, com ajuda de carregadores de malas com seus carrinhos
de mãos.
A "Carreteira de la Muerte" é também bastante assustadora na Bolívia |
O contraste em terras bolivianas
O Trem da Morte passa por locais isolados e repleto de abismos |
Do lado boliviano, em Puerto Suarez, pegamos um táxi para nos levar até a estação de trem em Quijarro, distante a menos de 10 quilômetros. Logo de cara percebemos o contraste com o Brasil. Os taxistas compravam carros usados da Inglaterra, que tem o volante na direita para a mão inglesa. Além disso eram movidos, descaradamente, a gás de cozinha. Podíamos sentir o cheiro de longe. O carro tinha um botijão amarrado em cima do capô do motor, que soltava faíscas para todos os lados.
Quijarro era um lugarejo pequeno com ruas largas, mas ainda
sem asfalto. Muitas casas de madeira e inclusive o hotel onde ficamos hospedados.
O trem partia dali com destino a Santa Cruz de La Sierra. Porém circulava somente
duas ou três vezes por semana. Pernoitamos duas noites ali, tomando banho de
água fria, pois o hotel não tinha água aquecida nos quartos. No hotel nos
avisaram sobre a necessidade de irmos um dia antes na estação, pernoitar na
fila para adquirir as passagens do trem. Mas também adiantaram que se pagasse
alguns trocados tinha pessoas se prontificando a ficar na fila para guardar
lugar.
Anjos da guarda
Trajeto pontilhado mostra o percurso percorrido: quase 12 mil quilômetros |
No dia seguinte, após o café da manhã, corremos para a
estação de trem. Pagamos o combinado a um senhorzinho que se prontificou a passar a
noite na fila para guardar lugar. Mas de nada adiantou. Quando abriram os
guichês em menos de dois minutos anunciaram o esgotamento das passagens. Parece que era tudo combinado entre eles: passagens
somente nas mãos de cambistas desesperados para faturarem em cima dos bilhetes.
A primeira impressão da Bolívia: tudo era negociável. Fato confirmado várias
vezes depois durante a viagem pelo país.
Pagamos 20 bolivianos por cada passagem, que na verdade
custava 7. Nossa moeda, o real, estava valorizado e eles precisavam de 8
bolivianos para comprar 1 real. O trem sairia no dia seguinte e fomos
informados da necessidade de apresentar comprovante de termos tomado a vacina contra
a febre amarela. Sem esse comprovante, um papel de cor amarela, não poderíamos
embarcar no trem. Os bolivianos exigiam a vacina. Mas não tinham a vacina. Tivemos
de regressar à Corumbá, no Brasil, para tomá-la.
No dia seguinte estávamos bem cedo numa fila enorme, que dava
volta no quarteirão, num posto de Saúde de Corumbá para tomar a vacina contra a
febre amarela. E nessa fila conhecemos um casal, com três crianças que iriam fazer
o mesmo trajeto. Se apresentaram informando que vinham do Canadá e estavam indo
também para Lima, no Peru. Disseram que eram peruanos. Ele se chamava José e
ela Maria, nomes bíblicos.
José e Maria foram como anjos, sem asas, que nos acompanharam
o tempo todo durante essa longa viagem. Eles pareciam conhecer bem o trajeto e
todas as dificuldades que teríamos pela frente. Foram seres especiais que
surgiram, de repente, ali do nada, em nossas vidas e nos auxiliaram, mostrando
os caminhos certos a seguir, nos livrando de perigos e de muitas emboscadas.
José e Maria nos ajudaram em todos os sentidos. Para complicar a situação e por desconhecimento não tínhamos feito o passaporte do nosso filho Renzo, na época com 1 ano e dois meses. Pensamos que não teria necessidade e que bastava apresentar a certidão de nascimento. O passaporte era a primeira coisa solicitada pelos maus educados e mal encarados guardas da fronteira e de imigração encontrados ao longo do caminho.
E nisso, José e Maria foram primordiais. Toda
vez que eles avistavam algum guarda pegavam nosso filho no colo como se a criança
fosse deles. Impressionante que ninguém os molestava. Não era a mesma coisa
conosco. Nossa aparência branca, de olhos claros e cabelos loiros, se
distinguia facilmente onde mais de 90% da população era composta por mestiços de
etnias indígenas. E a todo momento éramos colocados para fora do trem ou dos
ônibus. Na verdade, os policiais queriam nos tomar dinheiro de qualquer maneira. Mas tudo era negociado. Alguns trocados nas mãos daqueles guardas resolviam qualquer problema.
Trem da morte na Bolívia
Os vagões estão geralmente sempre lotados com gente viajando em pé |
O chamado “Trem da Morte” é uma ferrovia na Bolívia que
percorre cerca de 600 quilômetros entre as cidades de Quijarro e Santa Cruz de
La Sierra. É chamado dessa maneira porque quem viaja nele precisa estar com a
saúde em dia e não sofrer do coração. A ferrovia passa por trajetos temerosos,
margeada de um lado pelo paredão rústico das montanhas e pelo outro por
desfiladeiros e precipícios de até 900 metros de altura.
Construído na década de 1950 estre trecho da ferrovia é
bastante sinuoso. O trem leva cargas e passageiros. Há quem diga que o apelido
Trem da Morte já nasceu com a própria construção da ferrovia, porque vários
trabalhadores teriam morrido durante as obras. Outra versão é de que a Bolívia
sofreu algumas décadas atrás com a epidemia da febre amarela e o trem teria
sido utilizado para o transporte dos cadáveres e doentes. Além dos furtos e
assaltos aos passageiros muitos bolivianos viajavam em cima dos vagões por não
terem dinheiro para comprar a passagem e um ou outro caia durante o trajeto e
morria.
Quando foi para subirmos nesse trem quase desistimos. Ao
chegarmos na estação ficamos espantados com a quantidade de gente aglomerada ao
redor. Era uma multidão que não saberíamos como caberia naqueles vagões. Além das pessoas,
a quantidade de malas, caixas e mercadorias ensacadas era muito maior ainda.
Como lá praticamente não chove o ano inteiro, eles costumam amarrar as caixas e
pesados sacos de mercadorias em cima dos vagões. E tinha quem se arriscava a viajar em cima dos vagões para não pagar passagens. Uma loucura inacreditável! Naquela multidão de gente, todos
falando ao mesmo tempo, que parecia um grande mercado de peixes, o cambista que nos vendeu as passagens, para nossa
sorte, nos encontrou. “Venha aqui gringo que vou te mostrar o vagão e os seus
lugares no trem”, disse ele, falando em português, para nossa sorte.
Tínhamos comprados passagens no carro “Pullman”, o mais
luxuoso. Mas na verdade sem muitas vantagens em comparação com os carros de
primeira e segunda classes. Todos os vagões eram revestidos com paredes de madeira.
Os assentos nos de segunda classe eram um banco para três pessoas e sem nenhuma
inclinação. O encosto para as costas era de 90 graus. Os de primeira classe tinha uma
divisão, com encosto para os braços, entre os bancos e uma leve inclinação. E
os bancos nos carros “Pullman”, além da divisão e inclinação um pouco mais
acentuada, tinha também uma pequena almofada branca para encosto de cabeça. A diferença de conforto era pouquíssima!
Todos os vagões estavam apinhados de gente. Tinha passageiros
pendurados por todas as portas impedindo a passagem para quem fosse subir nos
vagões. Sabendo onde estavam as poltronas, apontadas pelo cambista que nos
vendeu os bilhetes, não pensamos duas vezes em entrar pela janela do trem. O
cambista nos ajudou, ajoelhando e fazendo tipo uma escadinha com as pernas para subirmos.
Primeiro Mila subiu. Depois passamos nosso filho Renzo pela janela. E daí começamos a
passar as malas, uma por uma. Nisso escutamos um assovio, um apito do trem que
começou a andar vagarosamente. Nesse momento nos bateu um desespero.
Ainda faltava repassar
pela janela metade das malas e o trem já estava andando lentamente. O cambista
nos ajudou. Jogamos todas as malas pela janela para a Mila pegar dentro do
trem. Até hoje não sabemos onde encontramos forças, para dar um salto atlético da
plataforma, que já estava quase no final, para cairmos dentro do vagão. O salto
foi feito com tanta força e vontade que quase saímos voando pela janela do outro lado.
Tivemos umas pequenas escoriações no braço, mas nada comparado ao susto de
imaginar ficar sozinho num país desconhecido.
Passageiros rezam
Passageiros rezam em determinados trechos da viagem |
Quem nunca rezou na vida aprende a rezar, inclusive em espanhol, nessa viagem de
quase 20 horas no chamado trem da morte. Isso porque parece que a gente é
protagonista de um filme de suspense. O percurso é feito por lugares íngremes.
De repente as malas e mochilas colocadas nos bagageiros superiores dentro dos
vagões começam a cair. O trem fica inclinado. As madeiras que revestem os
vagões chegam a estralar com a envergadura. Parece que o trem chora de dor. E quando se olha pela janela não tem quem não
se assusta com o precipício de 100, 200 metros ou mais de profundidade. É realmente muito assustador. E dá aquele friozinho
na barriga quando avistamos lá em baixo animais, que visto de longe, devido a
distância, parecem formiguinhas.
E nesses momentos é comum, principalmente os passageiros mais
idosos, puxar o refrão das orações do Pai Nosso ou da Ave Maria, em espanhol. Em
uníssimo som todos, sem distinção, rezam. Quando pensa que se acabou esse
perigoso trecho o trem faz uma curva e começa a inclinação para o outro lado,
com mais abismos e desfiladeiros que parecem não ter fim. É realmente assustador e cremos que daí deriva-se o sugestivo apelido para "trem da morte".
No meio de floretas densas a composição faz algumas paradas.
Nesse momento sobem nos vagões alguns homens armados e à paisana. Empunhando metralhadoras, ninguém sabe distinguir
se são policiais ou bandidos. Invocam com algumas pessoas, entre as quais nós,
que destoamos entre aquele povo com cara de índio. Tentam nos intimidar. A
sorte que o casal José e Maria sabia os nomes de todos aqueles lugarejos e nos
orientava como nos comportar diante daqueles homens ávidos por dinheiro. Ficávamos
apenas com alguns míseros trocados no bolso, sempre subtraídos, e dizíamos que
iriamos descer na próxima estação, informando inclusive o nome de alguma
autoridade que iríamos visitar. Tudo nos soprado antes por José e Maria.
Impressionante como eles sabiam os nomes daqueles lugarejos e das pessoas importantes que viviam naqueles lugares.
Ao longo desse longo trajeto era possível ouvir os vendedores
ambulantes dessas pequenas comunidades gritarem em uníssimo: “Limonada,
limonada, café, café, empanada de maiz (milho)...”. Tudo era produto caseiro, produzidos
de forma simples e bastante artesanal. As limonadas eram transportadas em
baldes abertos e vendidas em sacos plásticos com canudo.
Santa Cruz de La Sierra
Santa Cruz de La Sierra, a maior cidade da Bolívia, encanta a todos pela sua beleza natural |
Ao desembarcar em Santa Cruz de La Sierra não tem quem não
fica encantado com a cidade. Com mais de 1,5 milhão de habitantes. É a maior
cidade da Bolívia, superando inclusive a população da capital de La Paz. A
rodoviária de Santa Cruz era um verdadeiro show à parte, uma infinidade de
cartazes e pequenas guaritas coloridas que formavam um corredor de ofertas de
produtos artesanais. A partir de 1980, a coletividade brasileira cresceu ali tanto
quanto o seu entorno agropecuário. A cidade estava repleta de empresários
brasileiros e principalmente de estudantes que a procuram para estudar em uma
de suas quatro universidades.
A próxima parada, após percorrer mais 318 quilômetros, é
Cochabamba, passando por Montero, Yapacani, Tunari, Quilacollo e o Parque
Nacional Carrasco. Cochabamba é a terceira maior cidade do país. É também uma
cidade universitária que atrai muitos estrangeiros, principalmente os brasileiros
que são atraídos pelo baixo valor das mensalidades do curso de Medicina.
Subindo mais montanhas
A uma altitude de aproximadamente 3.650 metros acima do nível do mar, La Paz é a capital mais alta do mundo |
Viajamos mais 500 quilômetros para chegar na capital
boliviana. O caminho não é dos melhores. Naquele tempo quase não existiam estradas asfaltadas na Bolívia. O solo era de terra e cheio de cascalhos. Saímos
do trem da morte para enfrentarmos a “Carreteira de La Muerte”. Em alguns trechos o tempo nubloso atrapalhava a
visão. As estradas geralmente eram margeadas por um paredão rústico e por precipícios
de até 900 metros de altura.
O que chamou a atenção naquela época foi o fato de La Paz, a capital
do país, não ter sequer rodoviária. Isso mesmo. Os ônibus estacionavam em
praças nos arredores da área central para os passageiros embarcar e
desembarcar. E um detalhe: os ônibus nunca partiam pela manhã. Os motoristas ou
seus emissários ficavam esgoelando na praça em busca de passageiros. O valor da
passagem não era igual para todos. Quem pechinchava mais conseguia menor
preço. E os coletivos só saiam depois de completar a lotação, geralmente à noite..
Mais uma noite de viagem e no dia seguinte chegávamos em
Copacabana. Sem o mar do Rio de Janeiro essa histórica cidade fica na fronteira
entre Bolívia e Peru. Banhada pelo lago Titicaca. Com 8.300 quilômetros
quadrados e situado a 3.821 metros acima do mar, o Titicaca é o lago mais alto
do mundo e o segundo em extensão. Considerado como o local de origem dos incas,
ele abriga várias ruinas e duas ilhas, a da Lua e a do Sol, que são um dos principais
pontos turísticos da região.
Em Copacabana está a igreja de Nossa Senhora de Copacabana,
padroeira do país, onde se encontra uma das imagens mais cultuadas da Virgem
Maria. Ficamos sabendo que dali partiu uma réplica da imagem da santa levada
por comerciantes espanhóis ao Rio de Janeiro, onde ergueram uma pequena igreja
para abriga-la. A igreja cresceu e acabou por nomear um dos bairros mais
famosos da capital carioca.
Após atravessar o Titicaca, chegamos no Peru
Com altitude 3.800 metros acima do nível do mar, o lago Titicaca é o mais alto do mundo |
Ao chegarmos em Puno, no Peru, alugamos um triciclo para transportar as malas da estação para o hotel |
A travessia do lago Titicaca demora quase duas horas. Saímos
de Copacabana, na Bolívia, para aportar em Puno. Felizes por estar no Peru e
imaginando estarmos próximos de Lima nos assustamos com uma placa na rodovia
informando que a capital peruana estava ainda distante a quase 1.500 quilômetros,
o que demoraria ainda mais alguns dias de viagem.
Puno é um centro de comércio regional e considerada como a “capital
folclórica” do Peru. Anualmente promove festivais tradicionais com música e
dança vibrante. É comum ver pelas ruas mulheres com seus ponchos coloridos. O poncho é uma vestimenta, uma espécie de
capa quadrangular com abertura no meio pela qual se passa a cabeça. Confeccionado
de lã serve para se aquecer do frio.
A viagem foi atrasando, pois em algumas cidades os ônibus não
circulavam todos dias. Era preciso pernoitar aqui e ali à espera da lotação dos
ônibus. Além disso, muitos dos ônibus que tomamos quebraram no meio do caminho,
atrasando ainda mais o percurso. Uma hora era um pneu que furava. Outra hora o
motor esquentava demais e era preciso esperar esfriar para continuar rodando.
Cansado de ônibus velhos e quebrados em Puno nos informamos
para saber qual era a maior e melhor empresa de ônibus. Por unanimidade disseram
ser a Viação Ormeño. A passagem custava um pouco mais cara, mas os ônibus eram mais
novos e melhores. Ledo engano! Era véspera de Natal e o motorista dirigia um
ônibus da Ormeño lotado e totalmente embriagado. Levava junto ao volante uma garrafa
de pisco, uma aguardente tipicamente peruana, para se embriagar. Aquilo nos
deixou irritados, nervosos e preocupados com o que poderia acontecer na viagem.
Não demorou para o motorista, dirigindo embriagado, fosse o
causador de um acidente fatal. Ele atropelou e matou um ciclista na rodovia. O
acidente aconteceu a poucos metros de um posto da polícia rodoviária, que
prendeu o motorista em flagrante por dirigir embriagado. Isso era por volta das
7 horas da noite. O ônibus ficou retido, ao lado do posto da polícia, até as 11
horas da manhã do dia seguinte quando a empresa enviou outro motorista para
seguir a viagem. Essa demora nos deixou profundamente indignados e irritados
com a empresa.
Em direção à Arequipa o ônibus da Ormeño quebrou no meio do
caminho. Arequipa é a segunda maior cidade do Peru, cercada por três vulcões,
entre eles o Misti em formato de cone, com 5.822 metros de altitude, que fica
com o topo coberto por neve na maior parte do ano. Naquele tempo não havia
telefone celular e comunicação no meio de uma estrada desértica era quase
impossível. Dependia da espera da passagem de outro veículo pela estrada para solicitar
socorro. E lá se foi mais uma noite, dormindo ao relento nas poltronas desajeitadas
do ônibus quebrado.
Passamos por Nazca, cidade localizada no centro-sul do Peru,
onde estão as famosas e misteriosas Linhas de Nazca. São geoglifos compostos
por linhas, formas geométricas e silhuetas que recobrem mais de 1.000
quilômetros quadrados no deserto e até são mistério para arqueológicos e estudiosos
místicos do mundo inteiro.
Chegamos em Lima, três dias depois do Natal. Exaustos de uma
viagem cansativa e perigosa. Ao desembarcamos no terminal rodoviário da Ormeño
nos despedimos e agradecemos ao nosso casal “anjo da guarda” José e Maria. Estiveram
conosco, ao nosso lado, o tempo todo da viagem. Sem nos cobrar nada,
permaneceram ao lado, cuidando de nós e do nosso filho, das nossas malas e
mochilas, fosse de dia ou de noite.
Anjos enviados para nos proteger
Nessa foto está Maria e José, com seus filhos, e Mila segurando Renzo no colo |
Acreditamos que esses “anjos” disfarçados de pessoas foi Deus
quem nos enviou para nos acompanhar nos momentos mais difíceis. Se não fossem
eles, talvez não chegaríamos ao nosso destino nem estaríamos aqui para contar
essa história. Poderíamos ter sido assaltados, furtados, presos ou até mesmo
mortos. Inúmeras foram os momentos de perigos e situações embaraçosas que
sugiram nessa viagem. E José e Maria sempre estiveram ali, ao nosso lado, para
nos socorrer.
Um anjo da guarda, está escrito na Bíblia, serve como
ajudante ou mensageiro de Deus. Tivemos a sorte de termos dois. Os relatos bíblicos
contam que os anjos mutas vezes foram autores de fenômenos milagrosos. A crença
nessa tradição é de que uma de suas missões é ajudar as pessoas. Os anjos são
figuras importantes em muitas tradições religiosas do passado e do presente. Além
dos cristãos, os mulçumanos, os espíritas, hindus e budistas, todos aceitam a
sua existência, dando-lhes variados nomes.
Passado mais de um mês em Lima, antes de regressarmos ao
Brasil resolvemos ir no endereço que o casal José e Maria nos passou. Ficava localizado
no bairro Jesus Maria, na região metropolitana de Lima. Lá chegando nos
deparamos com uma surpresa: ninguém conhecia e nunca ouviu falar desse casal.
Voltamos abismados e nunca mais tivemos contato ou notícias desse casal
esplendoroso. Ficamos com a certeza de que foram anjos que nos acompanharam.
Essa foto foi tirada em La Paz por José. Aparece a Maria com seus três filhos, Mila (com Renzo no colo) e Nelson Gonçalves |
Llamas e milho roxo
As llamas podem ser vistas tanto no Peru como na Bolívia por todos os lugares |
Na zona rural do Peru é fácil se deparar com as llamas, um
animal mamífero ruminante da família dos camelídeos. É um animal com pescoço
comprido, de pelagem lanosa, domesticado pelo povo inca para a utilização no
transporte de carga e na produção de lã, carne e couro. A pelagem serve para protege-los
do frio.
O Peru tem 35 tipos de milho, mais do que qualquer outro país
do mundo. Entre eles estão as impressionantes espigas de milho das montanhas,
que além do tamanho dos seus grãos, se destacaram pela sua colorização escura.
Também conhecido como maiz morado ou milho preto seu gosto não é nada parecido
com o tradicional milho verde. O gosto se aproxima mais do açaí.
Com o milho roxo se faz a chicha morada, bebida muito apreciada no Peru |
Ormeño ressarce prejuízos
Ônibus quebrado, próximo de Arequipa. No fundo vê-se o vulcão Misti, inativado. Na frente do ônibus está Mila segurando Renzo ao colo |
Indignado com a demora, os atrasos nos horários e o descaso
da Viação Ormeño para com seus passageiros, resolvemos que iriamos procurar a
direção da empresa. Quando informamos os familiares da nossa esposa essa
intenção, eles ficaram ainda mais indignados conosco. Nos desencorajaram,
afirmando que iriamos perder tempo porque no Peru era desse jeito mesmo e que
ninguém iria nos dar atenção para nossa reclamação.
Mas somos brasileiros e insistentes. Meu pai, Manoel
Gonçalves, nos ensinou que não devemos baixar a cabeça e nem a guarda. Devemos
lutar pelos nossos direitos de todas as formas. E lá fomos nós na sede da
Viação Ormeño, no centro de Lima, para reclamar daquela situação.
Logo de cara fomos barrados na portaria. Com nosso “portunhal”,
misturando algumas palavras em espanhol com o português, insistimos que precisávamos
falar com o dono ou com alguém da direção da empresa que pudesse nos ouvir e
ressarcir nossos prejuízos. Tínhamos trabalhado numa afiliada da Rede Globo e
constatamos o respeito por essa emissora quando exibimos o crachá que nos
identificava nossa ligação com esse canal.
Nos deixaram entrar. Passamos por diversas secretárias. Fomos
insistentes. Queríamos falar com alguém que resolvesse nosso problema e ouvisse
nossas reclamações. Argumentava que se ninguém reclamasse da má conduta dos motoristas
e a empresa não ficasse sabendo não haveria como corrigir as falhas para que
não as voltassem a repetir.
De repetente lá estávamos nós entrando numa sala em que
nossos pés se afundavam num peludo carpete de cor azul. No fundo, sentando ao redor
de uma mesa grande numa cadeira de encosto alto que parecia a do Rei Salomão,
vimos um senhor gordo e careca, com olhos meio puxados, que nos fez lembrar, na
hora, a figura esotérica do Buda. Era o dono da empresa, Joaquin Ormeño
Cabrera, um bem sucedido empresário na área de transportes.
A empresa que levava o seu nome cortava estradas em países da
América Latina. Era possível, por exemplo, ir de ônibus do Rio e São Paulo até
a Colômbia, Chile, Bolívia ou Peru. Era detentor da maior rota de ônibus do
mundo. São 14 mil quilômetros percorridos em ônibus super confortáveis em 10
dias de viagem. Haviam também outras rotas, como São Paulo a Buenos Aires e
Santiago.
A fama de Ormeño aumentou em 1977, quando ele decidiu ampliar
a rota de seus ônibus e foi uma das primeiras empresas da América Latina a
adquirir veículos de dois andares para fazer viagens internacionais, criando a
figura da terromoças para servir café, mate e refeições durante os trajetos. Ele
faleceu em 2019, deixando a empresa para os filhos cuidarem.
Joaquin Ormeño ouviu pacientemente todo nosso relato. Ficou abismado
com o fato de um dos seus motoristas dirigir completamente embriagado,
colocando em risco a vida dos passageiros. Agradeceu as informações e perguntou
em que poderia nos ajudar. Falei que gostaria de ser compensado dos transtornos
e prejuízos causados pelos inconvenientes atrasos. Ele disse que me daria as
passagens de volta para regressar ao Brasil. Mas desta vez não mais passando
pela Bolívia, mas indo pelo Chile Argentina e Uruguai. Proposta feita e aceita.
Joaquin Ormeño foi propriedade da maior empresa de ônibus do Peru. Ele nos deu três passagens de volta para o Brasil |
Viação Ormeño foi a primeira empresa a circular com ônibus de dois andares |
Viagem de volta ao Brasil
Mercado Municipal de Santiago, onde se encontra uma variedade enorme de frutas |
O regresso ao Brasil, em janeiro de 1994, foi por outro
caminho mais longo, passando pelo Chile, Argentina e Uruguai. Partindo de Lima
são 6.461 quilômetros até São Paulo. Viajamos em ônibus de dois andares, com ar
condicionado, tv a bordo e terromoça. Esses opcionais eram um verdadeiro luxo
para a época.
Apesar de percorrermos mais 2.500 quilômetros a mais do que
na ida, o percurso do regresso foi feito em menor tempo viagem. Só tivemos uma
troca de ônibus. Isto porque resolvemos ficar alguns dias para passear em
Santiago, no Chile.
No Peru nos deliciamos com a imensa variedade do ceviche e
com a Inca Cola, um refrigerante local de cor amarela. O ceviche podia ser
encontrado sendo vendido em carrinhos nas ruas ou em locais sofisticados e
luxuosos denominados como cevicherias. Ciceroneados por um governador do Rotary
tivemos a oportunidade de visitarmos o Palácio das Armas, durante o primeiro
ano de gestão de Alberto Fujimori. A última cidade no extremo sul do Peru é
Tacna, onde o ônibus faz uma pequena parada para abastecer.
Ao entrarmos no Chile o ônibus estaciona na fronteira,
próxima da cidade de Arica, e todos os passageiros descem para carimbar o
passaporte. Uma coisa que nos chamou atenção logo de cara foi quando vimos,
pela primeira vez, os cartões telefônicos, que vinham com 20 unidades para se
fazer ligações de até quatro minutos. No Brasil ainda usávamos, naquele ano de
1994, as antigas fichas metálicas. Impressionado com a novidade adquirimos
alguns cartões, que traziam fotografias dos lugares turísticos do Chile.
Pela janela avistamos o ônibus passar pelas cidades de
Iquequa, Antofogasta, Coiaco, La Serena, Coquimino, Vinha Del Mar e Valparaiso,
cidade portuária e a segunda maior do Chile. Conhecida pelas colinas íngremes e
pelas casas coloridas no topo de penhascos, Valparaiso mantém como museu a
antiga casa onde morou o poeta chileno Pablo Neruda.
Resolvemos parar por alguns dias em Santiago, a capital e
maior cidade do Chile, que fica em um vale circundado pelas montanhas cobertas
por neve da Cordilheira dos Andes. Santiago é a sétima cidade mais populosa da
América Latina. Na época uma cidade limpa e bastante acolhedora.
Seguem abaixo algumas fotos dessa viagem. A qualidade não é das melhores. Pois foram fotografias tiradas por uma simples máquina fotográfica Olimpya. E era no tempo em que os filmes tinha que ser revelados, com muito cuidado para não serem velados e perdemos todo o trabalho:
Em 1994 o Chile já usava cartões o Brasil ainda utilizava as antigas fichas para ligações |
Os chamados "Tuc Tuc" era um dos meios improvisados de transporte no Peru |
Nosso passaporte com os carimbos de entrada na Bolívia, Peru, Chile e Argentina |
Em Copacabana, cidade boliviana na divisa com o Peru. Nelson junto com o filho Renzode um ano e 2 meses |
Mila em Copacabana, cidade boliviana nas margens do lago Titicaca, junto com o filho Renzo no colo |
Nelson, Mila e Renzo, na Praça das Armas, defronte ao Palácio de Governo, em Lima no Peru |
Igreja de Nossa Senhora de Copacabana, na divisa da Bolívia com o Peru |
Igreja de Nossa Senhora de Copacabana, na cidade boliviana na divisa com o Peru |
Nelson com o filho Renzo no colo numa movimentada rua de Santiago, no Chile. Reparem que no fundo a rua passa por debaixo de um edifício famoso na capital chilena |