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Pelé, vencedor de três Copas do Mundo, foi vítima de racismo na cidade de Jaú |
Por Nelson Gonçalves, especial para a Folha2
Mesmo após o fim da escravidão em 1888, o Brasil ainda viveu cenas de racismo por todas as partes. O preconceito racial não poupou artistas famosos como Francisco Egydio, Emílio Santigo, e nem mesmo Edson Arantes do Nascimento, o rei Pelé. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão no continente americano, além de ter sido o que recebeu o maior número de pessoas escravizadas nas Américas.
Um dos casos mais emblemáticos aconteceu em dezembro de 1958, em Jaú, cidade do interior paulista, com Pelé, que nessa época já tinha disputado sua primeira Copa do Mundo na Suécia. Ele marcou dois gols contra o time sueco e o Brasil tornou-se campeão mundial pela primeira vez. O rei do futebol esteve na cidade em companhia de outro jogador, o jauense Angelo Benedito Somani, que tinha acabado de ser contratado pelo Santos. Ao tentar entrar na piscina de um clube, o Esporte Clube Guarani, Pelé teria sido barrado e não autorizado a entrar.
O episódio foi relembrado numa matéria publicada pelo Jornal do Commercio, em novembro de 2021. Paulo Celso Brassaioli, que depois comprou a área onde funcionava o clube, contou ter presenciado a cena quando era garoto. “O Pelé chegou num Sinca Chambord com o Somani, que era colega dele no Santos”. Era verão e Somani trouxe Pelé a Jaú para passear. O porteiro não admitiu sua entrada, justificando que o local era restrito para os sócios. Mas a realidade é que não admitiam mesmo a entrada de negros.
Segundo Brassaioli, Pelé disse ao porteiro que pagaria para entrar. Mas mesmo assim não funcionou. Ficou esperando na portaria por cerca de 40 minutos e a resposta foi não. Pelé teria ficado nervoso e disse que um dia compraria “aquela porcaria” e mandaria derrubar tudo ao chão.
O episódio foi bastante comentado e até hoje é contado como uma das lendas da cidade. Jaú, mesmo após o fim da escravidão, também ficou conhecida por ser uma das poucas cidades que possuía dois jardins na área central. Dizem os moradores mais antigos que o jardim localizado na parte mais alta era exclusivo para o footing (caminhada que as moças e rapazes faziam ao redor das praças) dos brancos e o da parte baixa para os negros.
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Matéria publicada em 2021 relembra quando Pelé foi barrado em Jaú |
Emílio Santiago barrado no show onde iria se apresentar
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Emílio Santiago foi barrado de entrar no clube onde iria se apresentar |
O professor Paulo Ishi, venerável da Loja Maçônica Fé e Amor de Tanabi, conta outro episódio triste de racimos ocorrido em 1978 no tempo em que ele era estudante universitário em Ribeirão Preto. Durante um feriado prolongado, Ishi e grupo de estudantes foram até Monte Azul Paulista, cidade não muito distante na região de Bebedouro, para assistir a um show de Emílio Santiago. O cantor carioca estourava nas paradas de sucesso com a músicas “Sangon”, “Canto de Osanha” e outras que mais tarde lhe dariam o prêmio Grammy Latino. Poucos sabem que Emílio era formado em Direito e sonhava em ser diplomata. Estava prestes a seguir carreira diplomata quando venceu festivais de música e foi disputadíssimo pelas gravadoras.
Paulo Ishi afirma que foi uma situação muito constrangedora o que ocorreu naquele dia em Monte Azul Paulista. “O cantor chegou em um Fuscão Azul, dirigindo seu próprio carro, com uma caixa de som Giannini, microfone e um músico que tocava violão”, lembra. “Ao entrar pela portaria do clube os funcionários o barraram, pois o clube não admitia a entrada de negros. Emílio não era tão conhecido na época e aí criou-se uma grande confusão. O show que era para ter início às 20 horas teve atraso de mais de duas horas, pois o cantor irritado, depois do mal entendido não queria mais se apresentar”.
Francisco Egydio passou por situação constrangedora
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Interprete das músicas "Bate Outra Vez" e "Creio em Ti, Senhor", Francisco Egydio foi insultado pelos diretores de um clube na cidade de Marília |
No começo dos anos de 1980 outra situação embaraçosa vivenciou o jornalista Nelson Gonçalves, quando era diretor de um clube da cidade de Marília. O clube tinha contratado o cantor Francisco Egydio para o baile do Dia das Mães. Uma semana antes Gonçalves tinha ido visitar parentes na cidade de Oswaldo Cruz e lá se deparou com cartazes anunciando show no mesmo dia e horário com Francisco Egydio no Clube das Bandeiras. Imediatamente ligou para o cantor para esclarecer essa confusão: dois shows no mesmo dia e horário em cidades diferentes?
Francisco Egydio jurou que não sabia desse show em Oswaldo Cruz. Um dia depois ligou para esclarecer que a Secretaria de Cultura do Estado pagava, a título de ajuda de custo, um cachê anual para os artistas fazerem dois ou três shows por ano em cidades do interior paulista. Só que esqueceu de avisá-lo sobre esse compromisso. A situação embaraçosa se complicou ainda mais quando o presidente do Clube das Bandeiras disse que não poderia abrir mão daquela data porque os ingressos, as mesas, já tinha sido tudo vendido e o baile-show teria renda revertida para uma entidade assistencial de Oswaldo Cruz.
Com a intermediação do próprio cantor, que não queria prejudicar nenhuma das cidades envolvidas, Gonçalves entrou em acordo com o presidente do Clube das Bandeiras. Ficou acertado que o show de Egydio em Oswaldo Cruz começaria um pouco mais cedo do previsto. Ele subiria ao palco por volta das 22 horas, cantaria por uma hora e meia e seguiria de carro para Marília. Oswaldo Cruz fica a cerca de 110 quilômetros de distância de Marília e a viagem, de carro, poderia ser feita tranquilamente em menos de uma hora e meia. Chegaria em tempo para subir ao palco por volta da meia noite no clube mariliense.
Acontece que a apresentação em Oswaldo Cruz acabou atrasando em mais de uma hora. Quando Francisco Egydio subiu ao palco era quase meia noite. Gonçalves monitorava os horários, por telefone, com o clube de Oswaldo Cruz e sabia dos atrasos. Quando a perua Kombi que trazia Francisco Egydio aportou na porta do clube, os demais diretores da agremiação estavam impacientes e se aproximaram com palavras ofensivas ao cantor. “Tinha que ser preto para fazer essa ‘cagada’”, disse, aos berros, um dos diretores do clube. Ao ouvir o insulto, Egydio disse que não mais se apresentaria e que dali iria embora para São Paulo. Foi preciso muita astucia de Gonçalves e jogo de palavras para convencer o cantor a fazer o show. Argumentou ser grande a quantidade de fãs que o aguardava no salão. Os fãs eram muito maiores do que meia dúzia de diretores exaltados por causa do atraso.
Enfim, Francisco Egydio subiu ao palco e fez um dos shows mais memoráveis de toda a história do clube. Cantou “Bate Outra Vez” e interpretou chorando um dos seus maiores sucessos: a música “Creio em Ti, Senhor”. No meio do show, ele se desculpou pelo atraso, agradeceu a paciência do público e fez questão de ressaltar, dando um “tapa de pelúcia” na receptividade “carinhosa” que teve da diretoria do clube. Foi aplaudido em pé por demorados minutos pela plateia emocionada. Muitos sequer souberam do desagravo sofrido pelo cantor na portaria do clube.
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Francisco Egydio no auge de sua carreira gravou mais de 10 LPs e 29 compactos duplos |
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Francisco Egydio recebendo em 1970 o prêmio como melhor cantor |
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Emílio Santiago estourou no início de carreira com o seu LP Aquarela Brasileira |