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Museu conta a história de três brasileiros que cruzaram as três Américas

O calhambeque Ford T, fabricada em 1919, que percorreu 27 mil quilômetros entre o Rio de Janeiro e Nova Iorque se encontra em exposição em museu na cidade de Bariri


Nelson Gonçalves, jornalista da Folha2

 Inaugurado em 2018, na cidade de Bariri, interior de São Paulo, o Museu Mário Fava conta a incrível história de três rapazes que durante dez anos, entre 1928 e 1938, cruzaram as Américas do Sul, Central e do Norte a bordo de dois carros Ford, tipo calhambeques fabricados em 1919. A expedição, considerada como uma das maiores aventuras automobilísticas mundiais, superou dificuldades impensáveis, como rios, pântanos, florestas, animais peçonhentos, ferozes e a terrível Cordilheira dos Andes.

 Os aventureiros foram recebidos por presidentes e aclamados como heróis em muitos dos 15 países pelos quais passaram. A fantástica aventura teve início na cidade do Rio de Janeiro, onde Leônidas Borges de Oliveira, idealizador e comandante da expedição e o mecânico Henrique Pellicier a bordo do Ford T, doado pelo jornal “O Globo”, saíram em 16 de abril de 1928, rumo à capital paulista, onde se encontrariam com outro veículo, doado pelo “Jornal do Commércio” e dirigido por Francisco Lopes da Cruz, incorporado à expedição pelos seus conhecimentos de engenharia e geografia.

 Em São Paulo, Pellicier, o mecânico da turma, abandonou a expedição que seguiu pelo interior paulista. Ao passar por Pederneiras, cidade na região de Jáu, o mecânico Giuseppe Mário Fava, então com 21 anos, se ofereceu para completar a equipe, até então desprovida de mecânico, desde a desistência de Pellicier.  Os três rapazes percorreram 27.631 quilômetros, superando todas as dificuldades encontradas ao longo de tantas estradas em péssimas condições, muitas picadas abertas com enxadas, picaretas e dinamites, cruzando rios, matas, pântanos e a terrível Cordilheira dos Andes.

 Enfrentaram caminhos perigosos, muitas florestas e estradas tortuosas, num tempo em que não havia internet, GPS e nem celular. A viagem foi absolutamente longa. Primeiro porque a velocidade máxima alcançada pelos Ford T era de, no máximo, 60 km/h. Os carros tinham apenas duas marchas para frente e uma ré. E como os faróis eram muito fracos só viajavam durante o dia. A média percorrida foi de míseros sete quilômetros por dia. Isto porque não existiam estradas com viadutos, pontes ou túneis. E muitas e muitas vezes eles ficaram perdidos e desorientados no meio do caminho com os problemas surgidos.

Acidentes no meio do caminho

As fotos mostram na sequência o Ford 1919, apelidado de "bigode", a recepção em Detroid com Henry Ford e o carro ao lado da estátua de Mário Fava em Bariri

 O trio de aventureiros sofreu acidentes sérios, rolando abismos abaixo no Peru e no Equador. Sobreviveram aos acidentes e também às picadas de cobras, ataques de animais ferozes, como onças que atacaram o grupo por duas vezes, além de enfrentarem doenças, como febre amarela, malária e a fome, sede e frio, com temperaturas abaixo de zero, com o qual não estavam acostumados.

 De acordo com a revista Quatro Rodas, com base nos diários deixados pelos integrantes da expedição, foram consumidos 56 pneus pelos dois carros ao longo da viagem, além de 15 mil litros de gasolina e 1.300 de óleo.

 No pantanal Mário foi atacado por uma onça, tendo a vida salva pelos colegas e pelos índios da região. No Peru um dos carros caiu numa ribanceira. Um pouco mais adiante, no Equador, um novo acidente. Na Colômbia ficaram sem combustível e tiveram de improvisar uma mistura de querosene com chicha, uma bebida alcóolica muito consumida nos países latinos. Para lubrificar os motores Mário usava um preparo feito à base de gordura de lhama e de porco.  Na Cordilheira dos Andes para o combustível e a água do radiador do motor não congelassem, eles esvaziavam o tanque e o reservatório durante a noite o enchiam pela manhã. Devido as condições climáticas e falta de recursos, tanto financeiros como de alimentação, além de problemas mecânicos nos veículos e de saúde eles eram obrigados a permanecer meses em lugares desconhecidos nos países visitados.  

 Em Quito, no Equador, foram recebidos pelo presidente Isidro Cueva. Na Costa Rica o presidente Ricardo Oreamuno deu ajuda financeira para a expedição pudesse prosseguir viagem.  A mesma situação aconteceu em Honduras com o presidente Jorge Ubico e no Panamá com o presidente Ricardo Avane. Todos ajudaram com recursos financeiros. Na Nicarágua o grupo se encontrou e tirou fotos com o líder de oposição Augusto Sandino. Dois dias depois, Sandino e seus companheiros seriam fuzilados numa emboscada.

 No México foram recebidos como hóspedes de honra, com bailes e homenagens. De uma cidade a outra, porém, enfrentaram vários perigos. Em San Jerônimo, Leônidas quase morre de infecção e precisou ficar internado quase três meses. Lá conheceu a médica Drª Maria Buenaventura Gonzáles, com quem se casaria alguns anos depois. Na Cordilheira de Oaxaca, no este mexicano, o trajeto teve de ser aberto à força, dinamitando grandes pedras encontradas no caminho. Não havia estradas.

 Recebidos como heróis nos EUA

Francisco, Mário e Leônidas sendo recebidos em Detroid por Henry Ford

Ao chegarem nos Estados Unidos foram recebidos com festas e como heróis em diversas cidades. Eram festejados como paladinos do progresso por representantes de indústrias, por câmaras de comércio, universidades e autoridades. Em diversas cidades, como é tradição naquele país, ganharam simbolicamente as chaves do município.

 Em Detroit, se encontraram com o industrial Henry Ford. Maravilhado com a expedição e com o percurso feito pelos carros fabricados em sua indústria, Ford propôs a dar um cheque em branco pela compra dos dois veículos. Mas os três rapazes recusaram a oferta. Queriam trazer os carros de volta ao Brasil como espécie de troféu pela exitosa expedição que percorreu as três Américas. Em Washington, foram recebidos na Casa Branca pelo presidente Franklin Delano Roosevelt.

O presidente Getúlio Vargas mandou desenhar o mapa dom o traçado da viagem

Regresso ao Brasil

Em 5 de maio de 1938 os dois carros e os três expedicionários embarcaram de volta ao Brasil em um navio. Chegaram no Rio de Janeiro vinte dias depois. Depois de dez anos ausentes do país o presidente já não era mais Washington Luís que festejou, na cidade de Petrópolis a partida da expedição.

 O presidente do Brasil era Getúlio Vargas que recebeu o trio de viajantes com um banquete no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Mandou confeccionar e entregar a eles mapas desenhados com o trajeto completo da viagem.

 Carros se perderam no tempo

Francisco, Leônidas e Mário em Bogotá na Colômbia, junto com o Ford T

 Meses depois eles chegavam em São Paulo, onde também foram recebidos com festas pelas autoridades e pela população. Adhemar de Barros, interventor no Estado, recepcionou os rapazes. Os dois carros da expedição foram doados então para o Museu do Ipiranga para que ficassem em visitação permanente como verdadeiros troféus brasileiros.

 Mas, infelizmente, não foi isso o que aconteceu. Segundo o jornalista Marcos Rozen, especialista em automóveis e fundador do Museu da Imprensa Automotiva, os dois Ford T, produzidos em 1919 nos Estados Unidos, ficaram acomodados por anos, num barracão de zinco nos fundos do museu, sob as asas do hidroavião Jahu, a primeira aeronave a cruzar o oceano Atlântico sem escalas. Essa viagem com o hidroavião foi feita em 1927 pelo comandante João Ribeiro de Barros, que hoje empresta seu nome para importante rodovia paulista.

 O avião, porém, não recebeu muitos cuidados à época, e muito menos os carros. Todos foram deixados em um barracão de zinco, nos fundos do museu.  Um dos carros, o Fort T, depois de muita luta por moradores de Bariri foi levado para aquela cidade, por volta de 2017, para ser uma das peças principais do Museu que leva o nome de um dos seus filhos mais ilustres da cidade: Mário Fava.

 O outro carro, em formato de um caminhãozinho, pouco ou quase nada se sabe. Muito provavelmente tenha sido deixado ao relento em algum terreno e se desmanchou. Talvez tenha sido roubado, seja aos poucos, em partes ou peças, ou até mesmo inteiro.

 Os três heróis da expedição brasileira

Os três rapazes tiveram seu nome escrito na história de diversos países

 Giuseppe Mário Fava, filho de descentes italianos, nasceu em Bariri. E ao retornar para sua casa, após dez anos da expedição, sua mãe lhe abraçou e perguntou o porquê de tanta demora. “Eu não sabia que era tão longe”, respondeu. Essa frase se tornou depois título do livro escrito pelo escritor baririense Osni Ferrari para descrever a aventura desses três jovens.

O escritor bauruense Beto Braga também escreveu o livro “O Brasil através das três Américas”. Em Bariri, Mário Fava foi homenageado em vida com o nome de uma rua da cidade.

 Mário Fava ajudou, a pedido de Getúlio Vargas, acompanhou o engenheiro Bernardo Sayão a abrir a estrada Belém-Brasília. Também ajudou a fundar várias cidades no estado de Goiás. Na década de 1950, pilotando um trator de esteira, iniciou a terraplanagem de Brasília. Na década de 1960, foi pioneiro no ramo de recauchutagem de pneus na cidade de Paranavaí, onde veio a falecer, solteiro e sem filhos, em 9 e janeiro de 2000, às vésperas de completar 93 anos de idade.

 Em 2018 foi inaugurado o Museu que leva o seu nome num prédio tombado pelo patrimônio histórico da cidade, que já foi sede da Sociedade Italiana de Beneficência. Durante a inauguração do museu, em 4 de novembro de 2018, foi lançado o livro “Museu Mário Fava – Histórias de Bariri”, do escritor José Augusto Barbosa Cava.

Mário Fava em fotografia de 1955 quando ajudou na terraplanagem de Brasília

 Leônidas Borges de Oliveira

Os três rapazes sendo recebidos pelo presidente Flanklin Roosevelt nos EUA

 Nascido em Descalvado, município paulista na região de São Carlos, Leônidas Borges de Oliveira tinha 25 anos quando comandou a expedição denominada de três Américas, que tinha como objetivo fazer o percurso do Rio de Janeiro a Nova Iorque de carro. Ele serviu o Exército em Santa Catarina, Pernambuco e Rio Janeiro.

 Descobriu seus ideais panamericano quando era primeiro tenente, em Santa Catarina, ocasião em que passou a elaborar o projeto da futura expedição. Quando voltou ao Brasil, em 1938, se aproximou de Getúlio Vargas e foi nomeado pelo presidente para ser cônsul do Brasil em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia.

 Casou-se com a médica Drª Maria Buenaventura Gonzalez, que conheceu quando a expedição passou pelo México e com ela teve dois filhos Erland e Margot de Oliveira Gonzalez. Faleceu na Bolívia, em 31 de março de 1965, aos 61 anos. Seu corpo foi transladado ao Brasil e sepultado no Cemitério da Consolação em São Paulo.

 Erland, o filho mais velho, veio estudar Medicina no Brasil um ano após o pai falecer. Quis seguiu a mesma carreira da mãe, que foi uma das primeiras médicas a se formar na Universidade Nacional do México e era muito conhecida na Bolívia pelos seus trabalhos sociais.

 Erland conta que praticamente todo o material histórico guardado por seu pai sobre a expedição, como fotografias, condecorações recebidas em diversos países e muitas cartas, foi tudo queimado.

 Após a morte do pai, sua mãe, a irmã e o cunhado permaneceram na casa onde moravam e começaram a presenciar acontecimentos estranhos. De noite ouviam gritos, móveis sendo arrastados para lá e para cá, luzes apagando sozinhas, principalmente no banheiro onde o pai costumava permanecer longas horas numa banheira e no quarto onde estava um armário, guardado a sete chaves, com relíquias históricas da expedição das três Américas. Diziam que ele tinha ciúmes daquele armário e não deixava ninguém chegar perto. Não gostava de intrusos.

 “Minha mãe era muito católica, fazia ações sociais na igreja e tinha muita ligação com dois bispos que vieram benzer a casa. Os bispos e os padres mandaram pegar aquele armário com tudo o que tinha dentro, colocar no pátio da casa e atear fogo”.

 Foram destruídas pelas chamas não só as fardas, capacetes e condecorações de Leônidas Oliveira como também todos os registros históricos da expedição e muitas fotografias. Entre elas as fotografias que tiraram com o presidente Getúlio Vargas e com o presidente Franklin Roosevelt e assinaturas de gente importante que conheceram ao longo da viagem.

 Por sorte sobrou o diário da viagem, que estava longe dali, na caixa de brinquedos do filho, e anos depois seria entregue ao escritor Beto Braga para ajudar a resgatar a importância do pai e de seus dois companheiros de viagem.

 

Ao chegarem no Brasil foram recebidos pelo presidente Getúlio Vargas no Palácio do Catete

Francisco Lopes da Cruz

Nascido em Florianópolis, Francisco Lopes da Cruz era filho de imigrantes portugueses. Muito estudioso foi convidado por Leônidas Oliveira para fazer parte da expedição pelos seus conhecimentos de Engenharia, Geografia e aparelhos de navegação. Faleceu pobre, quando trabalhava como vigia noturno em Mogi das Cruzes.

 Depois da expedição trabalhou na Casa da Borracha e em algumas empresas no Rio de Janeiro. Quando trabalhava como chefe do almoxarifado da Companhia de Serviços de Engenharia na construção da estrada de ferro em Guararema, já com mais de 45 anos conheceu Olívia Camargo, então com 14 anos, por quem se apaixonara e viria a se casar e ter duas filhas: Estela e Leonor.

 Leonor, a filha mais nova, conta que o pai passou depois por várias dificuldades depois que a família teve a casa inundada por uma enchente em Mogi das Cruzes. “Nós mudamos para uma casa na rua Ipiranga, em Mogi, e não sabíamos que ali dava enchente. Quando descobríamos, estava com água até o joelho”, contou Olívia, quando tinha 91 anos, numa entrevista para o jornal “O Estado de S.Paulo”, lamentando a perda de arquivos e fotos históricas da expedição do marido falecido. “Nós tínhamos fotos tão bonitas, mas perdemos tudo nessa enchente”.

 Ironicamente, o homem que enfrentou uma década de viagem do Rio de Janeiro a Nova Iorque morreu em Mogi das Cruzes, na véspera do Natal de 1966, um dia depois de ser atropelado pela Kombi de uma granja. A filha Leonor contou que, assim como ela, muita gente em Mogi das Cruzes achava que era mentira as histórias contadas pelo seu pai no açougue, na padaria e nas vizinhanças. “Por falta de interesse, também nunca fomos atrás. Só depois da morte dele é que descobrimos mais detalhes e ficamos encantados”, disse ela, para o jornal “O Estado de São Paulo”. Quando ele morreu trabalhava como vigia noturno numa empresa em Mogi das Cruzes.

 O primeiro mecânico, Henrique Pellicier, que fez o trecho entre o Rio de Janeiro e São Paulo e desistiu da viagem, não se teve mais notícias dele. Numa edição do “Diário Oficial da União” de 1955 informava que ele ganhava licença prêmio como funcionário público.

Assista o filme que conta, de forma resumida, a fantástica história desses três brasileiros que atravessaram 15 países nas três Américas. 



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Museu Mário Favo ocupa histórico prédio em Bariri, que já foi sede da Sociedade Italiana




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