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Nathanael Bizarro, o pastor que forjou a própria morte para tentar se livrar da prisão

"O Cruzeiro", maior revista de circulação nacional, trazia matéria de capa e com seis páginas para retratar um dos crimes mais escabrosos e intrigantes de todos os tempos: um pastor que forjou a própria morte para tentar se livrar da cadeia e dos crimes praticados por ele em vida

   Por Nelson Gonçalves

Bizarro é um adjetivo que qualifica aquilo que é estranho, anormal e incomum. Esse termo é usado para caracterizar algo ou alguém que é considerado fora do comum, que seja assustador, desconhecido, irreal, surreal e excêntrico. O contador e pastor Nathanael Bizarro Rosa (1925-1994) além de levar essa palavra em seu sobrenome tinha também todas essas caraterísticas.

Ele conseguiu enganar em 1972 praticamente toda a população de Marília, cidade do interior paulista na época com cerca de 160 mil habitantes ao simular sua própria morte. Seu corpo foi velado durante todo dia e a madrugada, até clarear o dia, no templo da Igreja Metodista, uma das mais tradicionais igrejas evangélicas onde ele era um respeitado pastor. Até este repórter da Folha2, na época com 13 anos de idade, puxado pelas mãos do pai, compareceu ao féretro na igreja, localizada logo no começo da rua Nelson Spielmann, na área central da cidade. Foi um velório com muito choro, reza e orações em pról da alma daquele que seria um bondoso homem.

No dia 26 de agosto de 1972 o cortejo fúnebre seguia lentamente pelas ruas da cidade de Marília em direção ao cemitério municipal. O caixão foi levado por caminhão do Corpo de Bombeiros com todas pompas que uma autoridade merecia. Ele tinha sido vereador e tinha posicionamento político extremamente respeitado. Não há comprovação, mas suspeita-se que também fez parte da Maçonaria e de clubes de serviços como Rotary e Lions Clube. Havia muito tempo a cidade não via um cortejo fúnebre tão concorrido. Centenas de carros. Muita gente. Velhos, mulheres, jovens.  Muitos comerciantes desciam as portas de correr e fechavam seus estabelecimentos em respeito ao defunto.

Há exatamente um ano antes a cidade vivia a euforia do seu principal time, o Marília Atlético Clube (MAC), ter se classificado para a Divisão Especial da Federação Paulista de Futebol (FPF), ao vencer por 1 a 0, com gol do ponta esquerda Ivo, a equipe do Saad de São Caetano, no estádio do Parque Antártica. O time da casa, o MAC, começava a receber, para alegria da torcida, em seu estádio Bento de Abreu Sampaio Vidal, o “Abreuzão”, equipes de grandes clubes como Corinthians de Rivelino, Santos com Pelé, Palmeiras com Ademir da Guia e o goleiro Leão. Os torcedores marilienses estavam extasiados.  

Desta vez a cidade estava inconformada com a morte trágica do pastor e contador Nathanael Bizarro Rosa, com apenas 47 anos de idade. Figura respeitada em todos os círculos sociais da cidade. O corpo foi encontrado completamente carbonizado, totalmente irreconhecível no banco dianteiro do Corcel amarelo de sua propriedade. O carro estava parado na beira de um abismo no quilômetro 163 da rodovia BR-369, que liga as cidades de Cornélio Procópio a Londrina, no Paraná. O freio de mão estava puxado, as portas travadas e a chave no contato.

Embaixo do banco dianteiro estavam um aparelho de barbear, uma lata de talco que ele costumava usar, lentes de óculos e a fivela de um cinto, objetos praticamente intactos que possibilitaram, na época, a identificação do corpo por familiares e amigos. A polícia encontrou ainda no carro a aliança do pastor, que trazia gravado o nome da esposa, estranhamente intacta. Um relógio de ouro, do qual nunca desgrudava, não apareceu.

 Discursos emocionantes

Corpo foi enterrado na sepultura de número 13 e alguns meses depois começou a levantar suspeitas entre os moradores da cidade

No dia do sepultamento não faltaram discursos elogiosos à figura do pastor que mantinha uma coluna semanal denominada “Nossa Tribuna” no jornal Correio de Marília, onde defendia suas opiniões irrepreensíveis, saudáveis e honestas. Era tido como homem exemplar em todos os aspectos. Zeloso e previdente chefe de família, que deixara apólices de seguros que favoreciam sua esposa e filhos com indenizações altíssimas. O corpo carbonizado encontrado no interior do Corcel amarelo e que teve um sepultamento digno de um cidadão acima de qualquer suspeita, considerado como um dos maiores bons exemplos da cidade começou a levantar suspeitas, alguns meses depois do enterro. Enterrado com caixão de primeira, e uma vigília pesarosa, dentro do templo da Igreja Metodista. Milhares de fiéis passaram a noite em claro. Não faltaram lideranças religiosas, políticos e até o prefeito Octávio Barreto Brado, conhecido como Tatá e por chorar facilmente em público, chorou copiosamente, assim como muitas outras pessoas, pela perda do amigo querido ao lado do caixão.

O povo de Marília e das cidades vizinhas, onde o pastor era bastante conhecido, ignorava, naquele sábado de agosto de 1972, é que aquele corpo da sepultura 13, da quadra 7, do Cemitério da Saudade, daria início a um dos mais contravertidos casos policiais da história da cidade e dos Estados de São Paulo e Paraná.

O delegado Lourival Luiz Viana era um dos que indagava o fato de aliança ter sido encontrada intacta ao lado do corpo, para propositalmente fazer ligação para a identificação com o corpo carbonizado

 
Boatos invadiram a cidade

Transcorridos cinco meses após o acidente com o Corcel amarelo, em 1973, a cidade de Marilia voltava a comentar o caso com maior interesse. Nos hotéis, nos bares e em cada esquina das ruas e avenidas o povo falava sobre o assunto: não era de Nathanael Bizarro Rosa o corpo encontrado no veículo carbonizado no quilômetro 103 da rodovia BR-369. As opiniões se dividiam. Alguns defendiam a moral irrepreensível do pastor. Outros já mudavam de opinião e admitiam que o pastor acima de qualquer suspeita era um estelionatário endividado e autor de vultuoso golpe. Desviava dinheiro do INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), onde era tesoureiro, provocando na época um desfalque em torno de 300 milhões. Mas tudo transcorria de maneira bem discreta. As auditorias nas contas e investigações corriam de forma sigilosa.

 

Igreja Metodista na área central de Marília, onde Nathanael foi pastor e teve ali o seu falso velório, com vigílias e orações noturnas que invadiram a madrugada até o clarear do dia 

Revista “O Cruzeiro”

Surgiram comentários de que viajantes e representantes comerciais teriam visto Nathanael “ressuscitado” como importante fazendeiro numa pequena cidade no interior de Mato Grosso. Os boatos eram grandes. Mas ninguém tinha certeza. Os jornais e as emissoras de rádio da cidade se calaram sobre o assunto. Até que estourou na praça uma edição da revista “O Cruzeiro” que trazia na capa e em seis páginas internas matéria do jornalista Luiz Antônio Luz, com farto material fotográfico do repórter-fotográfico Carlos Piccino abordando o assunto e desmascarando a falsa boa imagem do pastor-contador, que também tinha ocupado cadeira como vereador na Câmara Municipal de Marília e era o tesoureiro do INPS.

“O Cruzeiro” foi uma revista semanal com circulação em todo o país que trazia reportagens de grande repercussão. Era editada pelos Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Mostrava que Nathanael estava envolvido em negociatas com conhecidos picaretas do comércio de automóveis e teria simulado sua própria morte para receber as apólices de seguro e se livrar da prisão.

O carro foi encontrado pela Polícia de Cornélio Procópio numa ribanceira. As ligações de Nathanael eram vastas e de influência. Os jornais da cidade se calavam e ainda publicavam matérias falando bem e pontos positivos sobre a memória de Nathanael. Em meio a fatos e boatos, comprova-se a existência de uma auditoria na agência do INPS em Marília.

Autopsia falha

Na autopsia foram encontrados três perfurações por projeteis de armas diferentes

A autopsia, feita pelo médico legista de Cornélio Procópio, deixava claro que o cadáver examinado era o de Nathanael Bizarro Rosa e que foram encontrados três projeteis de calibres diferentes no corpo, admitindo a hipótese de que ele teria sido assassinado. Porém alguns detalhes começaram a despertar dúvidas. Por que a preocupação do autor ou autores do crime em tornar irreconhecível o corpo, ateando fogo no veículo, de dentro para fora? E porque a aliança permaneceu intacta? Destruía-se o corpo, mas deixava vestígios para ser identificado. A aliança, as lentes dos óculos e a fivela do cinto, foram reconhecidas pelos parentes. Até uma lata de talco, que os mais próximos sabiam que ele usava, foi encontrada no veículo. O que levou a Polícia a suspeitar que esses objetos foram colocados ali depois do corpo e o veículo terem sido carbonizados.

O delegado seccional Gastão Monteiro Puga, que era amigo de Nathanael, falou para a revista “O Cruzeiro”, que ele era uma pessoa normal, de hábitos normais. O delegado não entendia o porquê o veículo teria sido encontrado à beira de um abismo, com as portas travadas, freio de mão puxado e a vítima, que seria o motorista, sentado ao lado direito do banco dianteiro. O delegado admitia a hipótese de que a trama foi elaborada com muita inteligência e cautela, para que, à primeira vista, aparentasse realmente um assassinato.

 Vereador atuante

Nathanael Bizzaro Rosa foi vereador muito atuante e querido pelos colegas. Teve três projetos transformados em lei e seus discursos eram sempre respeitados

Nathanael quando vereador teve três projetos transformados em lei. Um que estabelecia idade máxima para ingresso no serviço publico municipal. Outro instituía premiação para a elaboração da monografia sobre a história da cidade. E um outro que tornava obrigatória a contratação de contadores para examinar o balanço anual das contas da prefeitura. Esse último, como era contador, fez obviamente em benefício próprio.

O delegado Lourival Luís Viana, que estava de plantão em Marília na madrugada do acidente, e foi o primeiro a ser informado da morte do pastor, não acreditou em homicídio. Ele cita, por exemplo, o desaparecimento de um Fusca, de propriedade de Nathanael, que não foi mais encontrado. Nem mesmo os parentes do pastor sabiam informar onde se encontrava o carro “desaparecido”. O carro estava em nome de Nivaldo Rosa, filho do pastor.

Rui Garrido, investigador que conviveu com o pastor na Câmara Municipal, quando atuou como vereador, afirmava que ele nunca foi o “santo homem” que todos imaginavam. Diomar Cavadas, um estelionatário que mais tarde descobriram ter sido sócio de Nathanael em alguns negócios, contou à polícia que o pastor tomou dinheiro a juros de uma viúva e que depois negou-se a pagar o que devia, ameaçando denunciá-la por agiotagem.

O investigador Albino Pontara, de Cornélio Procópio, também chegara a conclusão de que o pastor simulou a própria morte para receber os seguros. Wanderley de Souza, frentista de um posto de beira de estrada, foi testemunha chave para desvendar o caso. Ele contou à polícia ter visto o pastor e um maltrapilho, meia hora antes do acidente, comprando gasolina extra para ser guardada em um galão no porta-malas do carro.

 

Delegado Gastão Monteiro Puga e o investigador Rui Garrido tiveram de se disfarçarem de padres para poder entrar na fazenda para prender Nathanael

Delegado de São Paulo

Quando o delegado Marcio Luís Moraes Barros de Campos, da Divisão de Crimes Contra a Pessoa do Departamento Estadual de Investigações Criminais da Polícia Civil, chegou a Marília, especialmente designado para realizar investigações sobre o caso, só encontrou referências elogiosas em relação ao pastor. Contudo, ao intensificar as investigações, ele descobriu um verdadeiro “arquivo secreto” na residência de Nathanael. Ali estavam, escondidas, as provas de outra face de sua personalidade.

Não era o tesoureiro correto que todos imaginavam e respeitavam. E nem o pastor sério e honesto. Não seguia a mesma linha de conduta que pregava nos cultos religiosos. E muito menos o político decente e honroso que seus eleitores conheciam. A descoberta de documentos que comprovam as fraudes no INPS trouxe à tona a verdadeira imagem do homem que se dizia bom, e era tão defendida por parentes e amigos.

Entre os documentos estavam as provas de muitas negociatas, a comprovação de sociedade com Diomar Cavadas, conhecido estelionatário e processado, inclusive, por receptação. O delegado Moraes Barros constatou a existência de extraordinária movimentação de dinheiro em contas bancárias, além de inúmeras apólices de seguros, pecúlios, relação de propriedades de vários veículos e imóveis.

Para o delegado, as suas múltiplas atividades o levaram a um total descontrole de sua vida particular. “Seus gastos eram bem maiores do que a sua renda”, revelou à revista “O Cruzeiro”. “Como ele sabia que a qualquer momento o escândalo explodiria, comprometendo seriamente sua posição social e de liderança na cidade, arquitetou todo esse plano escabroso”.

De início a Polícia de Cornélio Procópio suspeitou que o pastor, que cuidava da contabilidade da Fazenda Figueira, no município de Santa Mariana (PR), uma das propriedades do suíço Hans Peter Wirth, teria sido assassinado após ter sido descoberto um eventual desfalque milionário nas contas da fazenda. Hans Peter Wirth era filho do também suíço Max Wirth, fundador das cidades de Oriente e Oswaldo Cruz que foi dono de 19 fazendas, uma indústria de óleo e sócio em diversas empresas. Mas essa suspeita foi descartada logo após a conclusão de uma auditoria financeira nas propriedades de Hans Wirth.

O delegado Carlos Alberto Sandoval, que na época respondia pela Delegacia de Oriente, estava intrigado com o desaparecimento de um mendigo, que tinha o apelido de Companheiro que alegrava as crianças da cidade. Em Oriente situava-se também uma das fazendas de Han Peter Wirth, a Fazenda Paredão, a qual Nathanael também prestava serviços, cuidando da contabilidade da propriedade e por isso estava sempre em Oriente.

Prisão cinematográfica

 Nathanael depois que fugiu de Marília, deixando no imaginário popular que teria sido barbaramente assassinado e seu corpo queimado, se estabeleceu numa pequena cidade do interior do Mato Grosso. Vivia dentro de uma fazenda cercado de capangas fortemente armados. Vangloriava-se de sua fortuna e ninguém podia chegar perto dele.

Vivia cercado por um grupo jagunços fortemente armados. Aqui e acolá corriam-se boatos de que teria sido reconhecido por alguns viajantes de sua terra natal quando transitava pela cidade. Enquanto isso a Polícia já tinha todas as provas nefastas de sua verdadeira identidade. Sabia-se que ele tinha dado um golpe milionário no antigo INPS e dado o calote para quem tinha pedido dinheiro emprestado. Os altos valores dos seguros previdenciários feitos para beneficiar e amparar sua esposa e filho também não deixavam dúvidas que aquele corpo da sepultura 13 não era dele. A exumação do cadáver comprovou depois que arcada dentária não era a mesma.

Para chegar até aquele rico fazendeiro, que nessa altura dos acontecimentos se utilizava de outro nome, de falsa identidade e vivia cercado por cangaceiros fortemente armados os policiais que o conheciam muito bem tiveram de lançar mão de uma estratégia inusitada. Se chegassem na fazenda de cara limpa, identificando-se como homens da lei talvez não passariam nem da porteira adiante e seriam recebidos à balas, correndo o risco de serem ali apagados como foi o mendigo para quem ele deu carona na estrada.

Depois de muito estudar e analisar a situação, solicitar reforços para uma mega operação que envolveu policiais militares e agentes das Polícias Civil e Militares dos Estados de São Paulo, Paraná e Mato Grosso o delegado seccional Gastão Monteiro Puga e o investigador Rui Garrido agiram de forma inusitada para poderem chegar perto do criminoso. Ambos amigos de longa data de Nathanael, vestiram batinas, colocaram chapéus na cabeça, com terço e a Bíblia nas mãos. Disfarçaram de padres e assim conseguiram passagem fácil pela entrada da fazenda. E lógico levaram reforços, escondidos no porta-malas do carro.

Ao chegar na casa principal da fazenda, onde estava Nathanael, os dois “padres” foram apresentados como se estivessem ali em busca de donativos para uma campanha missionária destinada a ajudar os pobres da comunidade. Quando entraram na sala e deram de cara com o Nathanael Bizarro Rosa não tiveram dúvidas em reconhece-lo e dar voz de prisão. Nessa altura a fazenda já estava totalmente cercada por policiais e soldados do Exército. Diante de tais circunstâncias, Nathanael não resistiu à prisão. Foi preso e permaneceu na prisão por longos anos. Sabe-se que ele faleceu, aos 69 anos, em 9 de dezembro de 1994 e que na cadeia ele ministrava aulas de alfabetização e de história para outros presos. .

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