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Adriano Murgel Branco, em fotografia feita pelo repórter-fotográfico Eduardo Anizelli para o jornal Folha de São Paulo, pouco antes de sua morte em 2018 |
O ano era 1986. O Brasil
acabava de emergir de uma ditadura militar, que durou 21 anos de repressão.
Numa sala do então recém inaugurado Municipal Palace Hotel, em Paraguaçu
Paulista, um senhor de cabelos grisalhos com fios espetados para o alto e para
os lados iniciava palestra sobre o sistema de transportes no Brasil. E culpava
o governo militar pela desastrosa e nefasta escolha do modal de transportes brasileiro.
Era o engenheiro Adriano
Murgel Branco, especializado em sistema de transportes, autor de vários livros,
de pesquisas sobre o assunto e então secretário de Estado dos Transportes, no
governo de André Franco Montoro. Iniciava
a palestra colocando num antigo retroprojetor - um equipamento que projetava
imagens refletidas na parede por meio de lâminas de papeis transparentes – uma
pergunta para ser respondida pelos presentes na plateia: “Qual é o sistema de
transporte de cargas mais utilizado nos Estados Unidos?”.
Ninguém da plateia, entre
prefeitos, presidentes de câmaras, vereadores e assessores acertou na resposta.
Adriano informava, para surpresa de todos, que a modalidade mais utilizada para
o transporte de cargas nos Estados Unidos era o hidroviário. Isto mesmo o sistema
mais utilizado para o escoamento de cargas nos Estados Unidos era feito pelos
rios. Informava que, naquele ano, Estados
Unidos detinha 41.000 quilômetros de hidrovias e 240 mil quilômetros de
ferrovias, responsáveis, juntos, por mais de 60% de toda a carga de longa
distância transportada no país. E o Estado de São Paulo não possuía nem 2% de
rios navegáveis.
Adriano fez rápida
exposição sobre o surgimento dos primeiros sistemas de transportes no Brasil,
destacando que as primeiras cidades brasileiras surgiram na beira do mar. Os
desbravadores não adentravam mata adentro porque tinham medo dos índios
canibais, que matavam e comiam carne humana. Se aterrorizavam com animais
ferozes, como onças, chimpanzés e outros bichos que atacavam as pessoas.
Somente quase 50 anos
depois do descobrimento do Brasil é que surgiram os chamados bandeirantes
desbravadores do sertão, incentivados pelo sistema das capitanias hereditárias
implantados pela coroa portuguesa. E eles adentravam as matas viajando em
expedições pelos rios, o primeiro meio de transporte brasileiro.
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Trem de passageiros da antiga Companhia Paulista de Estrada de Ferro |
A ferrovia surgiu no
Brasil em 1854 com a inauguração do primeiro trecho de 14 quilômetros
construído por Barão de Mauá. A inauguração ocorria 17 anos depois de ser
inaugurada a primeira ferrovia do mundo na Inglaterra, ligando os 130
quilômetros que separavam Liverpool e Manchester. A inauguração da ferrovia no
Brasil, por Dom Pedro 2º, aconteceu bem antes desse sistema de transporte
chegar na França, Portugal e outros países bem mais avançados.
Sabendo que o Brasil não
dispunha de recursos suficientes para investir em ferrovias Dom Pedro 2º foi
buscar capital e investimentos externos para a construção da malha ferroviária
brasileira. O governo concedeu concessões para empresas estrangeiras
construírem ferrovias e explorar, por até 100 anos, o sistema de transportes de
carga e de passageiros. O Brasil teve mais de quarenta companhias ferroviárias
estrangeiras. Somente no Estado de São Paulo eram 18 empresas multinacionais
administrando as ferrovias. O país chegou a ter 34.500 quilômetros em sua malha
ferroviária, que tinha ligações com a Argentina, Bolívia e Uruguai. Para se ter
ideia da pujança e investimentos no setor nos tempos do imperador, basta
informar que desde a proclamação da República, de Marechal Deodoro ao terceiro
mandato do presidente Lula, não se construíram nem mil quilômetros de
ferrovias. Durante o governo imperial foram construídas mais de 33.000 quilômetros.
Tudo funcionava a
contento. O trem se tornou o principal meio de transporte para os brasileiros.
Centenas de cidades, como Araçatuba, Birigui, Marília, entre tantas outras,
surgiram e foram fundadas ao longo das linhas ferroviárias. O trem trouxe
progresso e esperança de melhorias para a população. Osvaldo Pinto, presidente
do Sindicato dos Trabalhadores das Empresas Ferroviárias da Zona Araraquarense,
afirma que os horários dos trens eram tão britânicos que tinha muita gente que
acertava o ponteiro dos relógios pelo apito do trem. Horário britânico, no
jargão popular, é aquele que durante anos seguidos funciona de maneira uniforme
e preciso, sem variação de segundos ou minutos.
Em 1957 quando Juscelino
Kubitscheck de Oliveira resolveu incentivar a implantação da indústria
automobilística no país criou a RFFSA (Rede Ferroviária Federal S/A). Mais
atrde, já no governo militar, essa empresa incorporou de uma só vez, numa
simples canetada, 18 companhias ferroviárias existentes no Brasil. Foram todas
estatizadas, ficando de fora somente as ferrovias que operavam no território
paulista e que também foram estatizadas, em 1971, passando a formar a Fepasa
(Ferrovias Paulistas S/A).
Críticos da medida afirmam
que analisando friamente a estatização do setor ferroviário no Brasil, que ela foi
premeditada visando beneficiar a indústria automobilística. Mantida pelos
governos militares, a estatização das ferrovias tornou-se uma espécie de
“cabides de emprego” para aliados. Não foi uma decisão acertada.
Sucatearam, parece que de
forma proposital, as ferrovias. Queriam beneficiar as indústrias
automobilística, as empresas distribuidoras de petróleo, lubrificantes e os
fabricantes de pneus. “Observem que nenhuma dessas grandes empresas tem capital
genuinamente nacional”, observava Murgel Branco, enfatizando que eram todas
estrangeiras ou multinacionais.
A Esso, que mantinha o
maior programa de notícias do rádio brasileiro, a Shell, Texaco e Atlantic,
grandes distribuidoras de petróleo, obviamente também não tinham interesse no
crescimento de outras modalidades de transportes que não fosse o rodoviário.
Elas precisavam encher os tanques dos caminhões, dos ônibus e automóveis para
poder faturar alto. A mesma coisa acontecia com as indústrias automobilísticas,
como Aero-Willys, Jepp, Volkswagen, Ford, General Motors, Mercedes Bens e
Chevrolet que mantinham o oligopólio da fabricação e comércio de caminhões,
ônibus e automóveis. Os fabricantes de pneus, como Goodyear, Firestone e
Pirelli, também não tinham interesse no sistema modal hidroviário e
ferroviário. Trens e barcos não necessitam de pneus para rodar.
Não houve mais
investimentos e nem expansão na malha ferroviária. Pelo contrário, muitos
trilhos e linhas foram erradicadas para dar lugar aos ônibus e caminhões das
grandes empresas de transportes. Não existe comprovação porque na época a
palavra “corrupção”, embora existisse na prática, parece que não fazia parte do
vocabulário brasileiro. Mas sabe-se de muitas histórias de “presentes”, em
forma de carros, que foram dados pelas grandes montadoras de veículos para
dirigentes políticos.
Entre um desses
“presentes” que veio a público ocorreu em 1966 quando o presidente Castello
Branco soube pelos jornais que seu irmão, funcionário com cargo elevado na Receita
Federal, ganhara um carro Aero-Willys, em agradecimento dos colegas pela ajuda
que dera na lei que organizava a função de auditor fiscal. Como o caso se
tornou público, Castello Branco não teve outra alternativa. Ordenou que o irmão
devolvesse o veículo e o afastou do cargo. Mas muitos políticos e funcionários
do alto escalão de governo foram presenteados pelas montadoras. E esses casos
não vieram a público. Políticos e a própria imprensa, ligada a políticos, não
tinham meios e nem interesse para investigar. Jornalistas da grande mídia
também se beneficiavam com automóveis, que as grandes montadoras davam como “empréstimos”.
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Quase três mil carros sendo levados em navios para exportação |
O Passat alemão para quem não sabe foi produzido por muitos anos no Brasil pela fábrica da Volkswagen. Até o seu lançamento, em 1973, todos os modelos da fábrica tinham tração traseira e motores refrigerados a ar. Desde o Fusca até a station Variant, passando pelo TL, Sedan 1600, Kombi e tantos outros modelos Volkswagen eram refrigerados a ar.
A maioria dos carros era
produzidos aqui, por causa da mão de obra extremamente barata. E quase tudo era
exportado, aos milhares, todos os meses, para países europeus e asiáticos. Até
o Audi, lançado em 1966, na Europa era fabricado aqui. O Passat alemão foi um
daqueles que tinha praticamente 100% da sua produção exportada.
Era igual “cabeça de
bacalhau”. Todos sabiam que existia, mas nunca viram. A não ser, alguns poucos
privilegiados, homens ligados ao governo que eram agraciados com esses veículos
pelas fábricas, sabe-se lá por quais razões.
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Ônibus do Expresso de Prata, empresa do político Alcides Franciscato, de Bauru |
Surgiram centenas de empresas de ônibus e mega transportadoras de carga. Várias delas ligadas a deputados, senadores e políticos com estreita amizades com os governantes da era militar. Um dos mais conhecidos foi Alcides Franciscato, que foi prefeito de Bauru e deputado federal que atuou como líder no governo do general João Batista Figueiredo. A empresa Expresso de Prata, fundada pelo seu pai, Angelo Franciscato, na década de 1930, ganhou nos anos 70 novas concessões e se expandiu nas áreas onde os trilhos foram arrancados.
Entre Bauru e Garça, o
governo militar arrancou mais de 158 quilômetros de trilhos e demoliu muitas
das 10 estações que faziam parte do percurso (Piratininga, Alba, Brasília, Cabrália,
Duartina, Avaí, Esmeralda, Fernão Dias, Gália e Parada 245). O caminho foi
encurtado para 73 quilômetros à ferrovia. A viagem, mesmo com composições
antigas de trem, entre Marília e Bauru, ficou mais rápida do que pelas
rodovias.
A família Contijo, em
Minas Gerais, sempre teve representantes na política e também foi detentora do
monopólio de uma das maiores empresas de ônibus do país. Muitas outras empresas também eram ligadas a
políticos. Mas eles não apareciam diretamente como sócios nas empresas, embora
atuavam arduamente em Brasília a favor de concessões para os amigos donos de
empresas de ônibus e de transporte rodoviário.
Para Adriano Murgel
Branco, o Brasil caminhou por mais de 20 anos na contramão daquilo que seria
natural e mais eficiente para o sistema de transporte brasileiro. “Num país de
dimensões continentais deixaram de investir na hidrovia e ferrovia, que são
modalidades extremamente mais em conta, para se investir no sistema rodoviário,
mais caro e com mais riscos de acidentes”, destacava.
Criticado por alguns, o
governo de Franco Montoro deixou de dar continuidade aos projetos de expansão e
duplicação de grandes rodovias, como a Castello Branco, Imigrantes,
Bandeirantes e Marechal Rondon. Mas investiu pesado para a pavimentação de
milhares estradas vicinais. Fundador do PRTB (Partido Renovador Trabalhista
Brasileiro), do qual era o seu presidente e se candidatou 14 vezes a cargos
eletivos, mas nunca chegou a ser eleito, o jornalista e político Levy Fidelix
ficou nacionalmente conhecido como “homem do aerotrem”. Ele defendia a execução
de um projeto de trem-bala, que ligaria São Paulo, Rio de Janeiro, Belo
Horizonte e as principais cidades do interior por meio de uma linha expressa
que passaria pelo meio dos canteiros centrais das principais rodovias.
Fidelix argumentava que se
as grandes cidades fossem ligadas uma à outra por meio de ferrovias em linha
reta, reduziria os congestionamentos e número de acidentes nas rodovias. “Já
imaginou ir do Rio de Janeiro a São Paulo em menos de duas horas de trem?”,
indagava, para complementar que ninguém mais iria querer enfrentar seis a sete
horas dentro de um carro ou de um ônibus para completar essa viagem.
Custos
Adriano Murgel Branco se
formou engenheiro pelo Mackenzie e um ano depois, em 1957, já era professor na
mesma faculdade e estava a frente do setor de transportes na Prefeitura de São
Paulo. Em 1978 ajudou a implantar os trólebus na capital paulista e já previa
integrações com outros sistemas intermodais. São Paulo chegou a receber 1.280
novos trólebus para se juntar aos 250 já existentes. Quando secretário de
Transportes, durante a gestão de Franco Montoro, construiu mais de 5.000
quilômetros de estradas vicinais para ligar os pequenos municípios para o
escoamento da produção agrícola.
“Não se tem levado em
conta que, para substituir um comboio de transporte fluvial para levar 4.400
toneladas de carga são necessários 110 vagões ferroviários de 40 toneladas ou
220 caminhões de 20 toneladas e que esses veículos, guardando um espaçamento
médio de 100 metros, ocupam uma faixa de tráfego de 22 quilômetros de
extensão”, escreveu Adriano. “O número de mortes em acidentes no transporte
hidroviário é praticamente inexistente, no ferroviário é de pequena monta e no
rodoviário é grande”, frisava, acrescentando que os acidentes com caminhões
representam quase 20% do total e os mortos chegam a 30%, embora os caminhões
constituem, em média, 5% da frota total do país.
Em termos de custos a
economia proporcionada pelo transporte hidroviário é extremamente vantajosa. A
economia refletiria nos preços de todos os produtos e bens de consumo porque o
frete significa um índice entre 5% a 10% do preço final das mercadorias.
Segundo Adriano, seria um projeto de longo prazo para ser implantado de forma
gradativa em todo o país.
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Eclusa de Barra Bonita, a primeira construída no Brasil |
As eclusas são obras de
engenharia que permitem que as embarcações subam e desçam rios em locais onde
há desníveis como barragens, quedas de água e corredeiras. Elas funcionam como
elevadores para embarcações onde duas portas separam os dois níveis do curso d’água.
No Brasil, do Oiapoque ao
Chuí, existem apenas 18 eclusas em funcionamento. Sob responsabilidade do DNIT
(Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes) estão oito eclusas (4
no Rio Grande do Sul, 2 em São Paulo, uma no Pará e outra no Paraná). No Estado
de São Paulos e concentra a maioria delas na hidrovia do rio Tietê (Barra
Bonita, Bariri, Ibitinga, Promissão, Nova Avanhadava e Três Irmãos). Inaugurada
em 1973, a de Barra Bonita foi a primeira eclusa construída na América Latina e
a única do governo militar.
A ditadura militar teve
papel significativo na expansão elétrica do país. Foram grandes obras para a
construção de mais de sessenta barragens hidrelétricas. Mas somente a de Barra
Bonita foi erguida a eclusa junto com a barragem. O engenheiro Claudio Fonseca
compara essa situação como se fosse construída uma casa sem banheiros. “E
somente depois que as pessoas estivessem morando na casa é que iriam arrebentar
pisos e demolir paredes para se construírem os banheiros”.
Para esse engenheiro não se
justifica construir tantas barragens e hidrelétricas sem as eclusas. Ele afirma
que para isso ter acontecido colocaram primeiro na frente uma série de
interesses privados. “Era interesse financeiros de conglomerados de grupos que
não queriam que as hidrovias e ferrovias funcionassem”.
O princípio para a
transposição das barragens é antigo. As eclusas já eram utilizadas pelos
chineses no século 16. E eles viraram mestres no assunto, construindo no rio
Iangtsé, da hidrelétrica de Três Gargantas, a maior eclusa do mundo, com 125
metros de profundidade. Ao todo são mais de 250 eclusas funcionando na China.
Nos Estados a primeira eclusa foi construída em 1885 no rio Ohio e hoje o país
possui 196 eclusas em funcionamento.
Além da falta de eclusas
outro problema que atravanca o funcionamento da navegação dos rios no Brasil
são os vãos entre os pilares das pontes construídas sobre os rios para os
carros passarem. Parece, segundo um engenheiro, que esses vãos estreitos foram
construídos de propósito para as embarcações não passar por debaixo dessas
pontes.
O governo paulista
investiu mais de R$ 20 milhões, entre 2010 a 1019, para remover dois pilares
para ampliação do vão de navegação sobre a ponte do rio Tietê, na rodovia Assis
Chateaubriand (SP-425), em Barbosa. Por lá, não trafegavam grandes embarcações
por esbarrar num grave problema: os pilares foram construídos muito próximos
uns dos outros e não possibilitava a passagem das embarcações.
As obras consistiram na
demolição de dois pilares, substituindo então os vãos de 38 metros por um
espaço de 116 metros. O mesmo tipo de obra já tinha sido feito, no começo do
ano 2000 na ponte sobre o rio Tietê que faz divisa entre os municípios de
Araçatuba e Santo Antônio do Aracanguá.
Caminho sinuoso
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linhas ferroviárias no Estado de São Paulo |
A justificativa para algumas
pessoas não tomarem o trem é que a viagem é mais demorada do que se ela for
feita de carro ou por ônibus. O que as pessoas não levam em conta é que o
percurso percorrido pelos trens geralmente é muito maior do que trajeto feito
por rodovia.
De São José do Rio Preto à
São Paulo são 430 quilômetros que podem ser feitos em menos de seis horas de
viagem, se for feita por carro ou ônibus. O que poucas pessoas não sabem, é que
percurso feito por trem anda cerca de 300 quilômetros a mais. De São José do Rio
Preto à capital paulista são cerca de 700 quilômetros sobre trilhos.
Além dos problemas técnicos, sendo necessário desviar de rios, montanhas e outros incidentes geográficos, há também certa desconfiança dos engenheiros e dirigentes que projetavam as ferrovias terem sofridos pressões para que os trilhos passassem sobre as propriedades de quem tinha posse e poder.
.Trecho entre Garça e Bauru deixou 10 cidades sem serem atendidas pelo trem