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Branca viveu até os 91 anos para a educação. Não casou e nem teve filhos. Sua vida foi totalmente voltada para o ensino |
*Nelson Gonçalves, Editor da Folha do Povo
Branca Alves de Lima pode-se dizer que é uma heroína
brasileira desconhecida para a maioria da população. A vida dela é a síntese de
um dos principais males, se não o principal da educação brasileira: o enorme
desrespeito dos gestores em relação a atividade das professoras primárias.
Dona Branca, como era conhecida, nasceu em 1911 no
bairro do Brás da capital paulista. É autora da cartilha “Caminho Suave”, que
se tornou fenômeno editorial por mais de meio século no Brasil. Desde a
primeira edição, em 1948, até meados de 1990, foram vendidos mais de 70 milhões
dessa cartilha. É o livro escolar recorde de maior tiragem e circulação na história
da educação brasileira. Milhões de brasileiros foram alfabetizados por ela,
inclusive o presidente da República, Jair Bolsonaro, no grupo escolar da
pequena Glicério.
Branca não foi a primeira mulher a editar uma
cartilha para alfabetização de crianças. Antes dela, em 1936, a professora
Benedicta Stahl Sodré, a dona Benê, mulher presbiteriana, lançou a cartilha Sodré,
que também fez enorme sucesso. Mas a Caminho Suave foi pioneira em termos de
ilustrações.
A educadora formou-se na Escola Normal do Braz
(atual Escola Padre Anchieta). Antes de concluir o curso já lecionava. Com o
diploma de normalista em mãos, aos 19 anos, Branca iniciou sua jornada em
escolas no interior paulista. Em entrevista ao jornal “O Estado de S.Paulo”, no
ano de 1991, registrou que iniciou sua carreira em uma escola rural de
Jaboticabal, pois naquela época, no início da carreira era preciso lecionar, no
mínimo, um ano na zona rural e aprovar, alfabetizando, pelo menos 15 alunos,
para depois dar aulas em uma classe de uma boa escola urbana.
Lecionou em Rio Preto
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Branca no início de carreira como professora |
Segundo tese de doutorado da acadêmica Diane
Valdez para a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 2006, Branca passou bem
mais que o tempo exigido. Passou por vários grupos escolares no interior
paulista, inclusive, em 1936, com 25 anos, lecionou em um grupo escolar de São
José do Rio Preto. Iniciou experiências com imagens associadas às silabas,
obtendo bons resultados.
Foi observando a dificuldade de seus alunos, a
maioria oriundo da zona rural, que Branca criou o método que ela própria
denominou de “alfabetização pela imagem”. A letra “a” está inserida no corpo de
uma abelha, a letra “b”, na barriga, o “f” fica instalado no corpo de uma faca,
a letra “o”, dentro de um ovo e assim por diante.
“Um dia estava olhando meus cartazes e comecei
a desenhar com giz em cima das figuras. Em cima da figura de um gato desenhei
um “g” e disse: ‘veja como a letra G se parece com um gato. Depois, no F,
desenhei uma faca. Percebi que as crianças, associando uma letra a uma figura,
memorizavam melhor”, contou em uma reportagem.
"Caminho Suave" inovou com ilustrações
A Cartilha Suave inovou para a época em vários
aspectos. Sua capa, mantida praticamente idêntica em todas as edições, era colorida e havia
nela duas crianças caminhando em direção à escola, um prédio fabuloso no meio
de uma paisagem idílica com uma árvore repleta de pequenas flores.
As lacunas na história de Branca são grandes.
Sabe-se que ela foi uma mulher do seu tempo, fora do seu tempo e que sua
história merece ser desvendada e conhecida. O jornalista João Victor Strauss,
editor da revista Nova Escola, escreveu no editorial de uma edição de 1996, que
“pelo número de ‘brasileirinhos’ alfabetizados o Brasil deve uma estátua à Dona
Branca”.
Branca não registrava em seus livros nenhum resumo
de sua biografia e nem sequer sua formação de normalista. Somente na 75ª edição
de Caminhos Suaves é que ela deu pista de sua família mencionando, pela
primeira vez, os nomes de seus pais e de uma irmã, também professora, na
dedicatória. Ela agradece a mãe Maria Isaura, a irmã Clarice e ao pai, Manoel
Silveira Alves de Lima, contabilista, por ter estimulado e “suavizado seu
caminho”.
Ela era filha primogênita do casal Isaura e
Manoel, que tiveram outras três filhas, todas professoras, e um filho que se
formou advogado.
Editoras se recusaram a publicar a cartilha
Numa entrevista, Branca contou que durante quatro
anos preparou a cartilha Suave Caminhos. Ao concluir procurou todas as grandes
editoras. Mas nenhuma se interessou. A solução foi pagar a edição inicial, de 5
mil livros, com recursos próprios. “Nos dois primeiros anos tive prejuízo, mas
no terceiro comecei a ganhar dinheiro”, contou. Inicialmente o governo do
Estado se interessou e, em seguido, o Governo Federal começou a adquirir e
distribuir sua cartilha para todos os municípios.
A relação de Branca com o trabalho parecia não ter
fronteira com a vida privada. De acordo com matéria do jornal “O Estado de
S.Paulo”, ela morava no mesmo local em que trabalha, na editora que levava o
mesmo nome da cartilha. Era um casarão, na rua Fagundes, no bairro da Liberdade,
na qual usava, para sua vida privada, apenas dois aposentos, seno o restante todo
ocupado pela editora, que tinha seu pai e cunhado como sócios.
Ao ser questionada, na reportagem, sobre lazer e o
que fazia fora do trabalho, declarou que gostava de assistir televisão e de ler
livros didáticos. Ela não casou e nem teve filhos. Atribuiu a rigidez em sua
formação ao fato de nunca ter casado. “Minha mãe só me deixou ir ao cinema
sozinha à noite quando eu tinha 28 anos”, contou, sem ressentimento, na
entrevista.
Collor suspendeu a compra da cartilha
Em 1990, durante o governo Collor de Mello, o
Ministério da Educação instituiu outros formatos de escolha para a compra de
livros didáticos para as escolas públicas. Os critérios avaliativos, por meio
do então Guia de Livros Didáticos, excluía obras consideradas desatualizadas ou
que portassem lições preconceituosas e discriminatórias. A cartilha Caminhos
Suaves, campeã de vendas, ficou de fora da escolha e projetou a decadência da
editora.
“Estão projetando, quase decretando, que os alunos
não usem mais cartilhas”, afirmou Branca sobre a decisão do governo. “Eu até
gostaria de adotar o sistema construtivismo para chegar a uma conclusão. Mas
hoje, eu escuto mal e enxergo mal”, disse, aos 81 anos, dez anos antes de
falecer, criticando a imposição de metodologias a partir de um poder central. “Só
ao final de diversos anos é que se vai chegar à conclusão se o construtivismo
dá ou não resultados”.
Em 2020, mostrou que o Brasil foi reprovado no Pisa
(Programa Internacional de Avaliação de Alunos). O levantamento revela a
péssima colocação brasileira no ranking dos 57 países submetidos ao exame para
medir a capacidade de leitura dos alunos: o Brasil é o pior da turma. Em primeiro
lugar está a China.
O resultado da avaliação mostra milhões de
analfabetos cursando as séries avançadas das escolas públicas. A enorme
quantidade de reprovados no Saeb, Enem e Inep, os repetidos vexames
internacionais e os programas que se eternizaram tentaram ensinar a ler, só
permitem uma conclusão: a alfabetização brasileira com os novos métodos de ensino
foi reprovada.
Enterro sem pompas e sem flores
O jornalista e professor universitário Nelson
Valente destacou em um artigo que o falecimento de Dona Branca não mobilizou o
mundo educativo e nem despertou interesse da imprensa. Ele conseguiu localizar
apenas um anúncio fúnebre padronizado e sem pompa. Silencioso, discreto e
tímido em uma coluna intitulada “Falecimentos”, no rodapé de matérias sobre
violência na capital paulista.
Branca morreu no dia 25 de janeiro de 2001, no
Hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, aos 91 anos. Foi velada e
enterrada sem pompas. A família, atendendo pedido dela, pediu para que não
fosse enviado flores, nem coroa e que doassem a quantia em dinheiro que seria
investido nesse ritual para hospitais e outras obras de caridade.