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Às vezes, a vida também é um rodamoinho: gira, confunde, mas passa |
Marival Correa, especial para a Folha2
Houve um tempo, não muito distante deste dominado por engenhocas digitais, que o próprio sentido do tempo era outro. Analógico, o mundo e as coisas seguiam outro ritmo. Cartas escritas à mão falavam de distâncias e de saudades. Famílias ainda reuniam-se em volta da mesa, conversas e risadas invadiam a sala e os quintais. E as brincadeiras, feitas nas ruas e praças, eram as mais simples possíveis, mas cheias de imaginação.
Esta semana foi noticiado que a rede varejista britânica Hamleys, uma das mais antigas do mundo, fez uma relação dos dez melhores brinquedos de todos os tempos. Talvez para surpresa de muitos, além daqueles óbvios a integrar essa lista, como os tijolos de Lego, a boneca Barbie e o cubo mágico, também constam lá bambolês, piões e conjuntos de bolinhas de gude, que a loja vende desde sua inauguração em 1760.
Até pouco tempo atrás, qual o garoto que não fazia a fieira de seu pião cantar, fazendo o pião zunir em velocidade absurda? Ou quantos não brincaram com bolinha de gude, em diferentes modalidades de competição – a minha favorita era aquela em que as bolinhas eram dispostas em uma linha riscada no chão de terra, e cada posição tinha valor a quem acertava o alvo: acertar na “na cabeça” dava direito ao jogador de pegar todas as bolinhas que estivessem ali; a segunda era o “pescoço” e as demais ficavam posicionadas no equivalente aos pés.
Uma notícia como essa sobre brinquedos que atravessam gerações, mesmo vinda de um lugar tão distante, é gatilho pra lembranças afetivas. Conecta adultos ao seu eterno espírito de criança, por vezes adormecido em um tempo que reduziu a noção do próprio tempo, e que tudo foi reduzido a telas minúsculas.
Agora o que temos, em vez de piões a rodar, de bolinhas de gude “faiscando” no chão ou as partidas de futebol em campos improvisados, são um outro tipo de experiência. O digital driblou o analógico e não temos mais a emoção do gol num campinho irregular e traves de bambu, nem os desafios de pião, bolinha de gude ou nossas corridas de kichute.
Talvez seja apenas uma percepção diferente do tempo. O digital, tal e qual a corda de um pião, faz rodar o tempo. Feito um rodamoinho que nos coloca em contradança com nosso eu de um outro tempo. Sem kichutes, sem os joelhos e cotovelos ralados, apenas com as cicatrizes que colecionamos. E essas, nenhuma tecnologia é capaz de remover porque estão marcadas pra sempre em nossas lembranças mais felizes.
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Bolinha de gude é um patrimônio da brincadeira popular |
O pião de madeira e a bolinha de gude têm em comum o fato de remeteram a um tempo distante da humanidade.
Consta que a origem do pião é incerta, mas vestígios dele foram encontrados em artefatos de argila datados de 4000 a.C., nas margens do rio Eufrates, de acordo com a Wikipédia. Apesar de sua origem remota, o brinquedo se espalhou por diversas culturas, sendo encontrado em diversos lugares como o Egito (1500 a.C.), a Ásia (2000 a.C.) e a China. O pião era usado como um objeto sagrado na Babilônia e como metáfora do movimento por filósofos como Platão.
O pião, também conhecido como "Strombo" na Grécia e "Turba" em Roma, era um brinquedo popular entre gregos e romanos. Na China, o pião era popular durante a dinastia Tang e também no Japão e na Coreia antes do século X d.C.
Já a origem da bolinha de gude remonta à antiguidade, com registros de jogos similares encontrados em sítios arqueológicos do Egito Antigo e da Mesopotâmia, datados de até 4.000 a.C. Não se trata de uma invenção, mas sim de uma evolução de jogos com pedras e outros materiais arredondados, que se popularizou em diferentes culturas ao longo do tempo.