A cantora Maysa, um dos ícones da Música Popular Brasileira, inaugurou o Canecão
Marival Correa, especial para a Folha2
O dia era 9 de maio de 1969. Uma cervejaria recém-aberta no Rio de Janeiro viveria uma noite que atravessaria o tempo e seria um dos principais capítulos da música popular brasileira. Aquela era a noite de Maysa, a inaugurar o palco do Canecão. Era a noite do rio-pretense Paulo Moura, produtor musical do espetáculo. E aquela seria uma noite que hoje ecoa em espaço vazio, depois da icônica casa de shows carioca ser demolida, no início deste mês de abril.
Naquela noite, consta que Maysa subiu ao palco estonteante, com uma túnica marroquina bordada a ouro em tons de azul e rosa. Abriu a apresentação cantando a inesquecível Demais - “Todos acham que eu falo demais e que ando bebendo demais.” Era o já famoso pot-pourri mesclando Demais, Meu Mundo Caiu e Preciso Aprender a Ser Só, em uma sequência que era o prenúncio de marcas superadas pela cantora.
A primeira era ver Maysa interpretando “Pra Quem Não Quiser Ouvir Meu Canto”, de César Roldão Vieira, jovem compositor de 25 anos que se destacara na terceira edição do FIC (Festival Internacional da Canção Popular) em 1968. A música, com seu tom autobiográfico, parecia obra da própria Maysa,
“Quem não quiser cantar comigo não faz mal, canto pra mim e canto por sinal pra não morrer”. Ao final da canção, ela agradecia as palmas e falava à plateia:
“Quando nós ensaiamos este show, ensaiamos uma coisa complicadíssima para dizer a vocês com respeito à saudade. Eu acho que saudade é algo bastante complicado para a agente complicar ainda mais. A única coisa que eu queria dizer é que vocês me recebam com o mesmo carinho com que eu volto pra vocês. Muito obrigada”.
Maysa inaugurava, assim, um novo capítulo na história da música brasileira ao quebrar um velho tabu. Colocava em xeque o preconceito de que bons artistas não podiam se apresentar em casas populares para grandes públicos.
“Não quero fazer mais showzinhos para deleitar meia dúzia de bacanas. Vamos acabar com essa história de que só grã-fino tem o direito de ouvir boa música. Quero cantar agora para todo mundo ver, até mesmo para o bombeiro hidráulico lá de Cascadura”, disse ela.
Depois daquela sua temporada no Canecão, que duraria em torno de um mês com aproximadamente 30 shows sob a batuta irretocável de Paulo Moura, atraindo uma média de mil pessoas por noite, surgiria um novo conceito de shows.
Enquanto na época os artistas ainda se apresentavam em boates acompanhados por trio ou quarteto, Maysa dava-se ao luxo de contar com uma verdadeira orquestra de sopros e cordas – 30 profissionais ao todo, incluindo bailarinos – regida por Paulo Moura, sem em nada dever aos aclamados musicais americanos em qualidade e sonoridade.
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O Canecão foi, sem dúvida, uma das maiores casas de shows do Brasil. Foi inaugurado com show da cantora Maysa, em evento produzido pelo rio-pretense Paulo Moura |
Palco sagrado
Maysa realmente inaugurara o Canecão para a MPB, transformando aquilo no que ele foi ao longo de quatro décadas, até fechar as portas, em 2010: um palco sagrado para as personalidades da música brasileira. Artistas do porte da própria Maysa, Elis Regina, Tom Jobim, Milton Nascimento, Vinícius de Moraes e Chico Buarque desfilaram ali, cristalizando a cultura brasileira em música e poesia.
A cantora também fazia cair por terra outro preconceito: o de que muitas pessoas tinham de ir a uma cervejaria para assistir um show de música popular. A reação da plateia era exatamente um dos problemas apontados por quem queria fazer com que Maysa desistisse de se apresentar em um lugar imenso como o Canecão. Afinal, o que se esperar de um local em que a entrada cobrada ao preço de apenas 10 cruzeiros ainda dava direito a uma rodada de chope de graça?
Mas Maysa não deu ouvidos. Arrastou milhares de populares ao Canecão durante sua temporada, e ainda forçou a elite à vê-la. E não foram poucas as figuras ilustres carimbadas dentre as quase duas mil pessoas no Canecão. Martha Vasconcellos, a brasileira que no ano anterior se consagrara como Miss Universo 1968, foi fotografada a uma mesa da casa, rendendo homenagens a Maysa. O ex-presidente e fã declarado Juscelino Kubitscheck teve de voltar da porta junto com a mulher, dona Sarah, porque não comprara ingresso antecipado e todas as mesas já estavam lotadas. O jornalista João Saldanha, técnico da seleção brasileira de futebol, foi aplaudido pela platéia ao ser reconhecido por trás de uma caneca de chope antes de a cantora entrar em cena. Julie London, cantora de jazz e atriz norte-americana que estava de visita ao Brasil, fez questão de cumprimentar Maysa nos camarins depois do show.
E assim, com aquele show definitivo e arrebatador, Maysa, nosso sempre maestro Paulo Moura e mais uma trupe de músicos geniais inaugurava um lugar ímpar da MPB, que agora foi ao chão junto com seus sons mágicos e sua história.
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Canecão está sendo demolido para dar lugar a uma nova casa de espetáculo e entretenimento |
Novo projeto
Ícone da vida cultural do Rio de Janeiro, o Canecão , localizado no bairro de Botafogo, começou a ser demolido no último dia 2 de abril. A promessa é de que o lugar dará espaço para a construção de um ambicioso equipamento cultural multiuso.
Na área entre as avenidas Venceslau Brás e Lauro Sodré, ao lado do Shopping RioSul, será erguido um complexo, com previsão de inauguração em 2026. A expectativa é de que o novo Canecão abrigará bem mais do que uma casa de shows.
O espaço multicultural abrigará oito diferentes unidades de entretenimento, num projeto arquitetônico com 15.000m² de terreno e 20.000m² de área construída. Serão cinco pavimentos, divididos entre subsolo, térreo e três andares. O projeto inclui ainda área verde, com um bosque.
O empreendimento do consórcio Bonus Klefer, responsável pela concessão do espaço por 30 anos, tem investimento total de R$ 200 milhões. O projeto é assinado pelo arquiteto João Niemeyer, sobrinho de Oscar Niemeye