Nelson Gonçalves, especial para a Folha2
A primeira marchinha de Carnaval
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Texto escrito por Mário de Andrade, em 1940, para o jornal O Estado de S.Paulo enaltecia a figura da compositora Chiquinha Gonzaga |
A primeira marcha carnavalesca foi a composição de Chiquinha Gonzaga, intitulada “Ó, Abre Alas”, feita para o cordão carnavalesco Rosa de Ouro em 1889. O Brasil ainda era uma monarquia e somente em 15 de novembro daquele ano se tornaria uma república federativa. Cidades centenárias como São José do Rio Preto sequer tinham sido emancipada. Entre os versos compostos por Chiquinha Gonzaga estavam: “Ó, abre alas, que eu quero passar / Eu sou da Lira, não posso negar...”
Com estilo musical importado, descendente das
marchas populares portuguesas, partilhando com o compasso binário das marchas
militares um pouco mais acelerado, as melodias eram simples e vivas, com letras
picantes, cheias de duplo sentido. Inicialmente eram calmas e bucólicas, mas depois
foram ficando mais agitadas e aceleradas.
As marchinhas carnavalescas atingiram o apogeu
quando tiveram como interpretes gente famosa como Carmem Miranda, Emilinha Borba,
Mário Reis, Dalva de Oliveira, Silvio Caldas e tantos outros famosos que gravaram
composições de João de Barro, Ary Barroso, Lamartine Babo, Alberto Ribeiro e de
João Roberto Kelly.
Depois dos anos de 1960 muito foi produzido,
mas pouco aproveitado em termos de marchinhas carnavalescas. As escolas de
samba, principalmente as do Rio de Janeiro, começaram a ditar quais eram os
sucessos e o samba-enredo começou a tomar conta do repertório dos bailes de
salão. Alguns compositores, como Chico Buarque com “Atrás da Banda”, arriscaram
a escrever as suas marchinhas. Caetano Veloso também se arriscou, mas flertou
com outro gênero, o frevo, que anima o carnaval em Pernambuco.
Anos 1980
Nos anos de 1980 algumas regravações chegaram a
fazer sucesso, como Balancê, de João de Barro e Alberto Ribeiro, na voz de Gal
Costa, e “Sassaricando”, de Luis Antônio, Jota Júnior e Oldemar Magalhães,
gravada por Rita Lee para a trilha sonora da novela de mesmo nome. Mas era pouco
para um país, que somente em 1952, produziu cerca de 400 músicas de carnaval, a
maioria delas marchinhas alegres e divertidas.
A alegria contagiante das marchinhas faz parte
da nossa cultura e tradição. Essas canções atemporais nos transportam para uma
época de festa, diversão e, claro, muito samba no pé. É impossível ficar parado
ao som de músicas como “Aurora”, “Mulata Bossa Nova”, “Turma do Funil”, “Cachaça”,
“Balancê”, “Pegando Fogo” e tantas outras que nos fazem reviver o espírito do
carnaval de outrora, onde a descontração e a simplicidade eram os
elementos-chave.
Para relembrar de algumas marchinhas
inesquecíveis, que fazem sucesso até hoje nos bailes e final de festas de
casamentos, trazemos aqui, em vídeo, com a fotografia de seus autores o som e a
história de algumas marchinhas de sucesso.
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João Roberto Kelly, o "rei das marchinhas" é autor de muitos sucessos carnavalescos |
Considerado como “rei das marchinhas” de Carnaval, João Roberto Kelly, completa 86 anos em junho de 2024. Está em plena forma física e intelectual. E continua compondo músicas. Ele concedeu entrevista recentemente para Tania Morales, no programa CBN Noite Total, onde afirmou que sua maior alegria que ele tem é quando comparece em algum baile e escuta a banda tocar suas músicas.
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Aurora Miranda desistiu cedo da carreira de cantora. Mas gravou "Cidade Maravilhosa" |
A música “Cidade
Maravilhosa” foi escrita por Antônio André de Sá Filho, em 1934, um jovem
compositor de 28 anos que já havia trabalhado com diversos grandes artistas da
época. Inspirado pela beleza da cidade do Rio de Janeiro, abraçada por um
Cristo Redentor recém construído, ele compôs a marcha com os versos: “Cidade
maravilhosa, cheias de encantos mil; cidade maravilhosa, coração do meu Brasil”.
“Mamãe Eu Quero”, lançada em 1937
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Jararaca (a esquerda) e Ratinho. O primeiro foi autor da música "Mamãe Eu Quero" |
Em janeiro de 1937
foi lançada, pela gravadora Odeon, a famosa marchinha “Mamãe Eu Quero”, de
Jararaca e Vicente Paiva. Jararaca era o nome artístico adotado por José Luís
Rodrigues Calazans que fazia dupla de cantores humoristas com Severino Rangel
de Carvalho, o Ratinho.
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Orlando Silva, o cantor das multidões, gravou a marcha rancho "A Jardineira" |
“A Jardineira”,
primeira música carnavalesca a fazer sucesso evidente, antes mesmo do carnaval,
foi uma marcha rancho, lançada originalmente em 1938 para o festejo do ano
seguinte. Tinha letra do compositor baiano Humberto Porto, música de Benedito
Lacerda e a primeira gravação feita por Orlando Silva.
O compositor pernambucano
Oswaldo Santiago saiu, na época, em defesa da dupla de compositores. “A
imprensa de norte a sul tem lançado as maiores injúrias a Benedito Lacerda e
Humberto Porto. Ainda que algo de mau houvesse, nenhuma eles teriam no caso”. O
próprio letrista Humberto Porto afirmou se inspirar num refrão de cantigas
infantis quando visitara a Ilha de Itaparica, na Bahia. Ouça clicando no vídeo abaixo a música "A Jardineira". Preste atenção nos metais que dão um toque especial à melodia.
“Allah La Oh”, 1941
Considera como um dos sucessos eternos de
marchinhas de Carnaval a música “Allah La Oh” há mais de 75 anos embala bailes
carnavalescos por todo o Brasil. De norte a sul do país, ela é conhecida pela
letra que cita “Allah, calor, Egito, deserto e “água para Ioiô e pra Iaiá”.
A música começou a ser composta Haroldo Lobo
que pediu a Antônio Nássara para completar os versos, com contribuição de David
Nasser, filho de imigrantes libaneses. Nássara ressalta também a atuação de
Pixinguinha, como arranjador, na gravação inicial. “Era um sábado de verão e o
maestro, cheio de serviço, estava trabalhando sem camisa, encharcado de suor”,
lembra Nássara. “Mesmo assim, ele teve a boa vontade de dar prioridade à nossa
música, começando a fazer imediatamente o arranjo, que ficou uma beleza, com
uns três ou quatro enxertos de sua autoria”. Passados alguns anos, na década de
80, um brasileiro mulçumano moveu processo contra os autores, que foi indeferido
pela Justiça fluminense. O autor da ação alegava que a melodia fomentava a
islamofobia contra os mulçumanos. Ouça clicando abaixo no vídeo para conferir os arranjos feito pelo maestro Pixinguinha, feito num sábado com muito calor:
“Nós os carecas”, 1952
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Arlindo Marques e Roberto Roberti eram tão parecidos que pareciam até irmãos |
“Nós, os carecas, com a mulheres somos maiorais.
Pois na hora do aperto. É dos carecas que elas gostam mais”. Esse refrão já um
dos mais cantados nos bailes carnavalescos. A música foi lançada para o carnaval
de 1952 e fez enorme sucesso na voz dos autores Arlindo Marques Júnior e
Roberto Roberti. Entre as décadas de 1930 e 1940, eles eram os favoritos nos
concursos de samba e de marchinhas.
Eles
pareciam até irmãos, mas eram apenas amigos inseparáveis que criaram a dupla
Anjos do Inferno. E o curioso era de que os dois, embora tivessem algumas
entradas bem avantajadas nos cabelos, não eram carecas de fato. Roberto Roberti
também assinou, quase 10 anos antes, ao lado do ator e poeta Mário Lago, outro
sucesso musical denominado “Aurora”, no Carnaval de 1941.
No carnaval de 1953 e nos anos seguintes não houve
música mais cantada do que “Cachaça”. A marchinha foi lançada pela gravadora
Copacabana pela performance de um dueto inusitado, mas muito bem timbrado,
formado pelo comediante Colé (apelido de Petrônio Rosa de Santana) com a
cantora Carmem Costa, cujo rosto era conhecido pelo público carioca e que
imortalizou com a sua voz o samba “Está Chegando a Hora”, sucesso muito cantado nas festas de despedidas, de autoria dos
compositores Henricão e Rubens de Campos.
“Cachaça” teve autoria assinada pelo trio
Mirabeau Pinheiro, Heber Lobato e Lúcio de Castro e ganhou amplo espaço em
todos os jornais e emissoras de rádio. Muitos não sabiam a segunda parte, mas
bastava a primeira para fazer dela um sucesso. No ano seguinte aportou no Rio
de Janeiro, Marinósio Trigueiro Filho, jornalista atuante em Londrina (PR)
dizendo ser autor da primeira parte da marchinha. Disse ter ficado surpreso com
o lançamento da música, onde três rapazes desconhecidos diziam ser seus autores. Marinósio não só contestava a autoria dos
três rapazes, como trouxe como prova um disco gravado oito anos em Montevideu,
no Uruguai. Apesar da contestação, a música acabou sendo gravada depois por
diversos artistas e sempre mantiveram os três rapazes como compositores da
melodia.
“Saca-rolha”, 1954
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Zé e Zilda, autores da música "Saca-rolhas", lançada para o carnaval de 1954 |
Música conhecidíssima cantada até hoje nos
bailes carnavalescos é marchinha “Saca-rolhas”, lançada em 1954, pela dupla Zé
e Zilda. A cantora e compositora cariosa Zilda formava com o marido José
Gonçalves, desde os anos 40, uma das duplas mais famosas do rádio. Se
apresentavam nas rádios Tamoio, Mayrink Veiga, Tupi e Cruzeiro do Sul sempre
com enorme sucesso. Os dois foram responsáveis por sambas e marchas que fizeram
muito sucesso, tais como “Aos pés da Santa Cruz”, “Império do Samba”, “Ressaca”,
“Mentirosa” e a famosíssima “Saca-rolhas”, que imortalizou a letra: “as águas
vão rolar, garrafa cheia eu não quero ver sobrar...”.
José Gonçalves faleceu em outubro de 1954, Zilda
passou a se apresentar sozinha e adotou o pseudônimo de Zilda do Zé. Nessa nova
fase, lançou em disco algumas composições que o marido tinha deixado. Em
homenagem ao marido, em parceria com Ricardo Galeno, lançou em 1956, o
samba-canção “Vai, que depois eu vou”, no qual lamentava a morte do marido, destacando
os instrumentos da bateria da escola de samba.
“Quem sabe, sabe”, sucesso em 1956
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Joel de Almeida, o "magrinho elétrico", autor de "Quem Sabe, Sabe" e "Madureira Chorou" |
Marchinha campeã do carnaval de 1956, a música “Quem
Sabe, Sabe” foi êxito absoluto, baseada em um jingle publicitário do
achocolatado em pó Toddy. Essa música foi gravada por Joel de Almeida, que a compôs
em parceria com o humorista Rodolfo da Rocha Carvalho, o Carvalhinho, falecido
em 2007 no Rio de Janeiro.
Joel de Almeida, conhecido como “magrinho
elétrico” também teve outros sucessos como “Madureira Chorou”, gravada em
homenagem à vedete de teatro de revista Zaquia Joge, mulher de Júlio Monteiro,
o samba “Leonor”, gravado por Aracy de Almeida.
Depois ele se tornou diretor artístico da
gravadora Polydor, contribuindo para lançar a carreira de um jovem talentoso
chamado Roberto Carlos, com a intenção de competir com João Gilberto. Trabalhou
anos depois como locutor na Rádio Tupi e faleceu em 1993 em São Paulo.
“Pegando Fogo”, relançada em 1982
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Francisco Mattoso e José Maria de Abreu, autores de músicas magnificas |
“Meu coração amanheceu pegando fogo / Fooogo / Foi uma morena que passou perto de mim e que me deixou assim...”. Esses versos, cantado e repetido inúmeras vezes nos salões de baile fez muito sucesso por todo o Brail. A música intitulada “Pegando Fogo” foi regravada em 1982 pela cantora Gal Costa.
Mas poucos sabem a letra original dessa música
foi escrita em 1939 por Francisco Mattosso, um advogado e compositor que a
compôs com seu principal parceiro José Maria de Abreu. Gravada pela primeira
vez pelo grupo Bando da Lua que acompanhava Carmem Miranda.
Debilitado pela tuberculose, Francisco Mattoso faleceu
aos 28 anos, em dezembro de 1941. Mas antes disso deixou também para a posteridade
algumas preciosidades musicais, tais como “Eu sonhei que tu estavas tão linda”,
feita em parceria com o mesmo José Maria de abreu e gravada pelo celebre Francisco
Alves.
Balancê
Antes disso, Gal Costa gravou para a folia de
1979 a música “Balancê”, que se tornou um dos seus maiores sucessos e a
projetou para todo o Brasil. A música foi composta originalmente em 1939 para
Carmem Miranda pelo compositor Carlos Alberto Ferreira Braga, o popular
Braguinha ou João de Barro, pseudônimo que passou a usar após abandonar o curso
de Arquitetura no Rio de Janeiro.
Braguinha é considerado o compositor de
carreira mais longa no Brasil, com mais de 400 músicas gravadas por artistas
importantes. Faleceu em 2006, aos 99 anos, no Rio de Janeiro. Suas composições
são conhecidas e cantadas por todos os brasileiros. Entre os seus maiores
sucessos estão “Pirata da Perna de Pau”, “Chiquita Bacana”, “Touradas de Madri”,
“As Pastorinhas”, “Turma do Funil”, “Balancê” e tantas outras.
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Moacyr Franco foi o primeiro interprete da música "Me Dá o Dinheiro Aí". Na foto ele aparece cantando a música ao lado do apresentador e compositor Antônio Aguillar |
A famosa marchinha
de carnaval “Me Dá um Dinheiro Aí”, composta em 1959 pelos irmãos Homero,
Glauco e Ivan Ferreira, foi gravada pela primeira vez por Moacyr Franco com o
selo Copacabana. E vendeu imediatamente mais de 100 mil cópias. No seguinte foi
a música mais tocada do carnaval, tornando-se um clássico e sendo repetida ano
após ano pelos foliões.
Silvio Santos e as marchinhas de carnaval
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Silvio Santos sempre esteve presente no Carnaval com suas marchinhas |
De 1965 a 1992 o apresentador Silvio Santos também
entrou na onda marchinhas e gravou várias delas. A maioria composta pelos funcionários
Vicente
Longo e Waldemar Camargo que tiveram várias músicas carnavalescas,
sempre com duplo sentido, gravadas na voz do patrão.
A primeira música gravada por
Silvio Santos para o carnaval de 1965 foi “índio Quer Apito”. A música fez
enorme sucesso no carnaval. Foi uma das mais tocadas nos bailes carnavalescos e
emissoras de rádio. E vendeu muitos discos, lançados com o selo Copacabana. Silvio Santos gostou da brincadeira e do
sucesso. E começou, todos os anos. a gravar pelo menos uma marchinha para o
carnaval.
Em 1966 gravou a “Marcha do Barrigudinho”, cuja letra falava que “o homem pode ser careca, baixinho e barrigudo, mas se tiver dinheiro, ele está com tudo”. Depois em 1969 “estorou” nas paradas de sucesso com a música “Transplante de Corinthiano”. Em 1970 gravou “Dig-dim”. Em 1971, “A Bruxa Vem Aí” e depois na sequência, “A Pipa do Vovô não sobe mais”, “Marcha do Cachorro” e, em 1979, aderiu ao plano do governo militar para substituir a gasolina pelo álcool e gravou “Mandioca”, sugerindo que o combustível também poderia ser feito a base da mandioca. Basta procurar no Youtube que o leitor encontrará várias marchinhas gravadas por Silvio Santos. E não só ele, outros apresentadores como Chacrinha e Bolinha também chegaram a gravar marchinhas carnavalescas.
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Dalva de Oliveira imortalizou sua voz nas marchas-rancho "Bandeira Branca" e "Máscara Negra" |
A música “Bandeira Branca”, composta por
Laércio Alves e Max Nunes em 1970, foi praticamente um dos últimos sucessos da
cantora Dalva de Oliveira, que faleceu dois anos depois aos 55 anos de idade. A tristeza da música, última marcha-rancho a reverberar
nos salões carnavalescos, se alinhou com a nostalgia propagada na regravação de
uma recente pérola do gênero, “Estão Voltando as Flores” (escrita por Paulo
Soledade, em 1961).
Aos ouvidos do público jovem formado nos
inflamados festivais dos anos de 1970, a música “Bandeira Branca” soou como
algo ultrapassado e que não faria sucesso. Mas o fato é que a tristonha canção na
voz laminada de Vicentina Paula de Oliveira, nome de batismo da cantora, se tornou
sucesso. A direção grandiloquente do maestro Lyrio Panicalli (1906-1984), com
orquestrações e regências de Lindolfo Gaya (1921-1987) e do maestro Nelson
Martins dos Santos (1927-1996), contribuíram para deixar o disco dolente se
tornou um dos maiores clássicos de sucesso de músicas carnavalescas.