Zé Carioca foi lançado há 80 anos pela Disney
como uma forma de promover a Política da Boa Vizinhança dos EUA |
Nascido no Copacabana Palace, hotel histórico
localizado de frente para a praia do mesmo nome no Rio de Janeiro, o Zé
Carioca, que representa o Brasil nos desenhos da Disney, completa 81 anos em
2023. Retratado como o típico malandro carioca, sempre escapando dos problemas
com o “jeitinho” característico do brasileiro, o personagem é pouco conhecido
nos Estados Unidos. Mas no Brasil ele ganhou fama e até uma revista exclusiva
em quadrinhos, publicada mensalmente durante 57 anos pela Editora Abril.
Zé Carioca foi criado pelo próprio Walt Disney
dentro de um quarto do Hotel Copacabana Palace quando esteve no Brasil em 1941.
Existem muitas controvérsias e versões sobre a inspiração de Walt Disney para a
criação do personagem. A mais certeira é de que o personagem brasileiro foi
criado em pleno andamento da Segunda Guerra Mundial e fazia, na verdade, parte
de uma estratégia chamada de “política de boa vizinha” dotada pelo governo dos Estados
Unidos para atrair apoio e melhorar as relações políticas com os países
latino-americanos.
"A viagem de Walt Disney ao Brasil tinha duplo objetivo: estratégico e econômico", afirmou o professor Mário Sérgio Brum, em entrevista para o jornal "O Povo", de Fortaleza (CE). "Ele precisava criar personagens latino-americanos para aprofundar o mercado e a parceria, fazendo os latinos se reconhecerem num filme estadunidense e apresentando ao público dos Estados Unidos o que era a América Latina".
Estratégia de guerra
Walt Disney conversa com Getúlio Vargas durante sua
visita ao Brasil
Os esforços americanos para atrair apoio para a
guerra contra Japão, Alemanha e Itália não se limitavam ao Brasil. Os acenos
também foram dirigidos para vários países latinos com a criação de personagens de
desenhos animados. Assim, além do Zé Carioca para o Brasil, foram criados pelos
estúdios Disney, que recebiam subvenção do governo americano, os personagens
Gauchinho Voador, para a Argentina, e Panchito, para o México, além de incursões
desses personagens pela Bolívia, Peru e outros países latinos.
Impressionado com a técnica do J.Carlos,
cartunista que desenhava as versões brasileiras de personagens da empresa na
revista ”O Tico Tico”, Disney o convidou para trabalhar em Hollywood, mas o
convite foi recusado. Há quem diga que o Zé Carioca foi uma homenagem de Disney
para J. Carlos. Alguns especulam que o papagaio malandro foi inspirado no sambista
Paulo da Portela. Outros defendem que foi inspirado no cavaquinhista paulista
José do Patrocínio Oliveira, o Zezinho do Cavaquinho, que inclusive forneceu a
voz do personagem no primeiro filme em que Zé Carioca aparece nas telas do
cinema, em 1942. O uso do guarda-chuva pode ter vindo do Dr. Jacarandá, uma
figura do folclore carioca da época.
Zé Carioca não foi concebido com o objetivo de
formatar as sequenciais histórias em quadrinho. Era para aparecer numa curta
temporada de filmes para homenagear o Brasil e a América Latina. Não foi
pensado, nem mesmo pelo próprio Walt Disney, que faria tanto sucesso e que logo
cairia no gosto de todos os brasileiros, principalmente das crianças.
Quando Disney criou o personagem, que não era um
pobre favelado, sequer um caloteiro, mas apenas um entusiasta defensor das
tradições brasileiras.
Primeiro filme
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Cena do filme "Saludos Amigos" em que Zé Carioca aparece pela primeira vez e contracena com o Pato Donald, convidando-o para tomar cachaça |
Sua primeira aparição foi no filme “Saludos Amigos’,
como amigo do Pato Donald. Na época do lançamento do filme, Zé Carioca foi
descrito pela revista “Time” como “um papagaio brasileiro elegante, que é tão
superior ao Pato Donald, quanto o Pato era do Mickey Mouse”.
O grande momento do episódio brasileiro no filme “Saludos
Amigos” é quando o americano Donald, o pato, em visita ao Brasil, e o
brasileiro Zé Carioca, se veem frente a frente pela primeira vez. Zé Carioca
oferece um cartão de visitas ao estrangeiro. No cartão está escrito: “José
Carioca, Rio de Janeiro, Brasil”. E pede que o outro faça o mesmo. Donald saca
então seu cartão de visitas: “Donald Duck, Holywood, USA”. Ao ler o que está
escrito no cartão, Zé Carioca se dá conta de que está em frente do famoso
personagem do cinema e tem um ataque de euforia.
“O Pato Donald, o Pato Donald”, diz repetidas
vezes Zé Carioca, enquanto pula de alegria. Por fim, abre os braços e
aproxima-se. “Ora venha de cá dar um abraço”, diz, em característica linguagem
dos anos 40: “um abraço bem carioca, bem amigo, um daqueles de quebrar as
costelas”. E abraça o Pato Donald com efusão. Zé Carioca nesta cena não é bem o
malandro. É o homem cordial, que oferece até a cachaça, bebida genuinamente
brasileira, para o Pato Donald experimentar.
Revistas em quadrinhos
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Zé Carioca se tornou personagem preferido da criançada brasileira |
A primeira história do Zé Carioca produzida para
uma revista em quadrinhos foi “O Rei do Carnaval” (The Carnival King, no
original em inglês). A história produzida por Carl Buettner para a revista “Walt
Disney ‘s Comics and Stories”, de número 27, publicada em 1942 e publicada,
nove anos depois no Brasil, em “O Pato Donald” de número 8. Nela, o papagaio
tenta conquistar uma jovem sambista, inspirada em Carmem Miranda.
Além da própria revista, o papagaio possuía um
almanaque que levava o seu nome. A primeira versão teve 21 edições, de maio de
1986 a fevereiro de 1995. Em dezembro de 2010, ganhou nova versão, com
periodicidade bimensal, que durou até 2017. Além da revista própria e do
Almanaque do Zé Carioca, o personagem ainda teve várias edições especiais, com
participações de outros personagens como Mickey, Pateta, Donald, Peninha,
Gastão, entre outros.
O personagem começou sua trajetória vestindo terno
e gravata borboleta coloridos, com um chapéu palheta e carregando sempre em
mãos um guarda-chuva. Esse visual era muito comum na orla carioca, usado
principalmente por músicos, sambistas e artistas.
A representação cômica, por vezes considerada até
controversa do brasileiro, criada a partir das percepções de Walt Disney sobre
o Brasil, o personagem Zé Carioca, andava meio sumido das bancas de revistas.
Até 2018, ele tinha uma revista mensal, que chegava às bancas pela Editora
Abril. A Abril deixou de publicar as revistas da Disney em julho de 2018, após
68 anos de parceria, como resultado da grave crise que se abateu sobre a
empresa atingindo diversos setores dela, como a editora e distribuidora.
Mas em maio de 2019, desde que a editora gaúcha de
Caxias do Sul, a Culturama, assumiu a publicação dos quadrinhos da Disney no
Brasil, o papagaio com pinta de malandro retorna aos poucos às bancas.
Pinta de malandro
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O boa pinta Zé Carioca fez sucesso no cinema e nas histórias em quadrinhos |
Se o papagaio lembrava o Brasil, na mente dos estrangeiros,
e se é uma ave identificada com um comportamento folgazão, ou malandro, podendo
chegar ao obsceno, pode-se daí concluir que o Brasil era identificado, até
pouco tempo atrás, com essas caraterísticas de folgazão e malandro. E talvez
até obsceno. Para o cronista holandês Gaspar Barléu, que viveu até 1648, não
existia pecado abaixo da linha do Equador. O Brasil, escreveu Barléu, era
identificado, tanto na visão dos estrangeiros como na dos próprios brasileiros
como um país obsceno.
O papel que o papagaio desempenha nas anedotas é
esse mesmo de malandro e obsceno. O papagaio das anedotas é o estereótipo do
brasileiro, numa de suas vertentes mais difundidas. O papagaio é o herói sem
nenhum caráter. Quase todos os países tem uma ave ou algum animal como símbolo.
Os Estados Unidos ostentam a águia como símbolo. Ela está presente nos brasões
de armas e, em forma de estátua, na cúpula dos principais e mais importantes
edifícios do país. A França tem o galo e o Chile o condor. Alguns países
ostentam em suas bandeiras e brasões algumas aves ou animais mais ferozes como
o leão e dragões.
O Brasil tem o papagaio como tradução ornitológica
da nacionalidade. À diferença dos outros países, o papagaio não figura nos
escudos, nos selos, nas medalhas e nem nos brasões pelos quais o Estado anuncia
sua presença. Talvez, por o papagaio falar tantos palavrões, não o tenham
julgado como digno de tais honrarias.
O papagaio não é forte e valente como a águia, não
tem a autoridade do galo, que faz acordar todos quando surgem os primeiros
raios solares do dia, e nem voa tão alto como o condor. O papagaio exibe um ar
matreiro e carrega reputação galhofeira que não o recomenda para o papel de
representar oficialmente a pátria.
Papagaio no descobrimento
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Portugueses se encantaram com a quantidade de papagaios encontrados nas novas terras |
A presença e a representatividade do papagaio com
o Brasil são tão fortes que quando Pedro Alvares Cabral aqui aportou com a sua
expedição de desbravadores na primeira carta, escrita por Pero Vaz de Caminha,
para o rei Dom Manoel, o nome dessa ave é citado pelo menos cinco vezes na
carta.
Por pouco o nosso país não foi batizado como
Papagaio ao invés de Brasil. “Terra de Papagalli” foi um nome que concorreu com
o de “Brasil”, e até com certa vantagem, nos anos que se seguiram a descoberta.
Se tivesse vingado, nosso país seria conhecido hoje por um nome de bicho, como
é o Peru e a República dos Camarões, e nós brasileiros seríamos os “papagaienses”
ou “papagaianos”. Talvez soasse até de mau gosto, mas de modo algum seria
despropositado.
O papagaio brasileiro se faz presente, ao longo
dos séculos, na literatura de vários autores famosos. Ele pousou no ombro dos
piratas e se tornou protagonista das piadas mais picantes na boca do povo
brasileiro. Coincidentemente as cores de suas penas são as mesmas elegidas para
representar o Brasil.
Não há dúvidas de que os papagaios que habitavam
as terras dos indígenas causaram forte impressão no povo europeu. Muitos faziam
questão de levar exemplares dessa espécie para solo europeu, que até então muitos
desconheciam a ave falante. Logo eles serviram de apelido às novas terras, como
comprova a carta que o italiano Matteo Cretico, secretário da Embaixada de Veneza
em Lisboa, enviou para seus superiores. Nela, ele dava conta da nova
descoberta, “acima do Cabo da Boa Esperança”, de uma certa “Terra delli Papagá”
(terra dos papagaios, em tradução para o português). No famoso mapa-mundo,
desenhado por Alberto Cantino, em 1502, o primeiro em que aparece o Brasil, um
trio de coloridos papagaios decora o nosso território. Em mapas-mundos
posteriores, a nova descoberta portuguesa era identificada como “Terra
Papagalli”.
Contam os historiadores que o príncipe holandês Maurício
de Nassau, governador da colônia holandesa implantada no Nordeste do Brasil, no
século 17, pediu que lhe trouxera à sua frente um prodigioso papagaio. Ao ser
introduzido na sala onde o esperavam o príncipe e membros de sua comitiva, o
papagaio teria exclamação: “Quantos homens brancos por aqui”. Um dos presentes
apontou para Nassau e perguntou ao papagaio quem seria aquele homem,
paramentado em trajes militares. O papagaio teria respondido: “Um general ou
algo assim”.
Maurício de Nassau ficou impressionado com a fala
do papagaio. Ele acreditava que os papagaios, ou pelo menos aquele papagaio,
era capaz de raciocinar e dialogar como seres humanos. O embaixador inglês em
Haia, Willian Temple, ouviu a história do próprio príncipe e deixou-a
registrada em suas memórias. Maurício de
Nassau teria perguntado ao papagaio: “De ondes vens?”. A resposta foi: “Do
Maranhão”. “A quem pertences?”, e o papagaio responde: “A um português”. “Que
fazes ali”. O papagaio: “Vigio as galinhas”. O príncipe riu e indagou: “Guarda as
galinhas?”. E o papagaio respondeu dizendo que as guardava e “muito bem” por
quatro ou cinco vezes fez o “xô, xô” que usava para chama-las.
Franceses
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Quadro do artista Pierre Thomas, de 1778, mostra como os papagaios faziam parte da nobreza francesa |
Não foram somente os holandeses e espanhóis que
por aqui aportaram em buscas das riquezas e dos papagaios. Os franceses, que
por anos andaram empenhados em surrupiar o possível das novas terras, também
demonstraram enorme interesses pelos papagaios. Prova disso é que um precioso
documento, datada de 1538, relativo à intercepção do navio francês La Pelérine
pelos portugueses, revela que os franceses faziam o transporte de 600 papagaios
para a França. Para se ter ideia de que esses bichos eram valorizados, apenas um
exemplar de papagaio custava o equivalente a 30 quilos de madeira do pau-brasil.
Os franceses mantinham agentes em terras que, ludibriando
a vigilância dos portugueses, encarregavam-se de convencer os índios a cortar o
pau-brasil e transportá-lo para bordo dos navios. Esses agentes, chamados de “interpretes”
porque tinham por primeira missão aprender a língua dos índios, também
aproveitavam para capturar papagaios e, o mais importante, ensiná-los a falar
francês. Um papagaio que já chegasse papagaiando em francês valeria muito mais
nos mercados de Paris.
Jean de Léry, integrante da comitiva de
Villegagnon na aventura da França Antártica, conta nos relatos que deixou sobre
“Viagem à Terra do Brasil”, em 1578, que ganhou de um interprete um papagaio
que “pronunciava tão perfeitamente as palavras da língua selvagem e da francesa
que não era possível distinguir a sua voz da de um homem”.
Cérebro maior
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O fato dos papagaios imitarem a voz humana e pronunciar algumas frases é um fenômeno estudado há séculos pelos cientistas |
A bela plumagem e a fala dos papagaios foram e são,
até hoje, o deslumbre para muitos europeus. Cientistas e zootecnistas estudam
várias hipóteses para explicar a habilidade do papagaio em imitar a falar
humana. A primeira delas está no formato da língua e do bico arredondado,
bastante diferentes das outras aves. Outra característica é que os papagaios
tem o cérebro maior do que outras aves do mesmo porte, o que seria uma explicação
para a sua inteligência superior.
Um estudo da USP (Universidade de São Paulo) concluiu
que os papagaios, quando na natureza, vivem em bandos que gritam ao voar, mas
ficam quietos quando em repouso, sobre os galhos das árvores. Quando parados
são difíceis de localizá-los. Ficam quase camuflados. O verde de suas penas
confunde com o verde das árvores. E ficam silenciosos como um vegetal.
Os papagaios apegam-se também aos seres humanos.
Sabe-se que em Chapada Diamantina que quando o dono morreu o papagaio entrou em
depressão e não interagiu com mais ninguém. Esses bichos são, assim como os cachorros,
fieis aos seus parceiros, capazes de afundar na depressão e alegrar-se quando
seus donos estão alegres.
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Zé Carioca, Pato Donald e Champito, representantes do Brasil, EUA e do México |
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Walt Disney, o criador do Zé Carioca |
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Zé Carioca na revista lançada pela Editora Culturama |